[4044]
Passei distraidamente frente à loja e distraidamente continuaria se não tivesse reparado num letreiro enorme dizendo «Saúde e Paz. O resto, a gente corre atrás». A verdade é que havia ali um toque diverso do estatuto habitualmente sisudo do português que abre uma capelista na Buraca ou uma pastelaria na Graça e parei. Parei e entrei. Entrei e mergulhei num universo de nomes que projectavam sabores exóticos e fonética estranha e que, por isso mesmo, me entusiasmou. Uma senhora alta e loiríssima, espartilhando os seus cinquenta aninhos bem servidos num vestido preto de corte elegante aproximou-se e o seu «boa tarrdji sinhôr, posso ajudá?», esclareceu quaisquer dúvidas que eu pudesse ter sobre a sua origem.
As minhas dúvidas não eram bem dúvidas, à partida, percebi que todos os artigos expostos, salvo seja… eram de comer. Pé de moleque, cocada branca, sucos naturais de Açai, caju, tamarindo, cana de açúcar, cachaça «Velho Barreiro», caguinar, guariloba e geleia de mocotó emprestavam uma sonoridade quase poética aos artigos expostos e tudo aquilo era música para os meus ouvidos, entusiasmado que sou pelo exotismo das coisas e das pessoas.
E foi assim que me lancei num questionário genuíno sobre o significado daquelas muitas dezenas de nomes estranhos para mim e a senhora loira de preto, diligente, elegante e simpática ia-me elucidando. De uma forma que eu ia já ordenando o meu espírito sobre se compraria um pé de moleque ou uma geleia de mocotó e não fosse a senhora loira de preto ter-me explicado que estávamos perante dois artigos completamente distintos no sabor e na origem e eu era bem capaz de ter comprado os dois. O diálogo continuou, gosto de ser bem servido…fiquei até a saber que a senhora loira de preto era do Rio Grande do Sul e eu devo ter feito involuntariamente uma expressão que levou a senhora loiríssima de preto a dizer-me que no Brásiu não é tudo negão, não sinhô, viu?. E quem era eu para desmenti-la?
É neste estado de êxtase e de indecisão sobre o mocotó ou o tamarindo, a guariloba e o açai quando entra uma senhora, esta mais morena e vestida de claro, o que eu deveria ter tomado logo como sinal de diferença relativamente à dona da loja. Pegou numa embalagem de sumo natural de caju e quando eu me preparava para me condoer pela senhora loira de preto que provavelmente iria ter de repetir tudo quanto me dissera a mim à senhora morena de claro, eis que esta pergunta se o caju tinha mais calorias que a goiaba. Ainda a loira de preto não tinha lido a informação nutricional e já a morena de claro perguntava:
- Mas estes produtos são biológicos? ou foram sujeitos a produtos agro-tóxicos? (Nota à margem: Agrotóxicos é a designação eleita pela legião de seres politicamente correctos para designar os agro-químicos). A loira de preto não sabia… mesmo assim esboçou um sorriso e preparava-se para dizer qualquer coisa quando mais perguntas se sucederam em catadupa:
- E sal? Têm sal? Olhe, e este? E o caju tem mais hidratos de carbono que a goiaba…. E tem sódio, olhe aqui, tem sódio. Hummm…e aqui diz que não tem quantidades significativas de proteínas, gorduras totais e saturadas e fibras. Não são significativas, mas tem.
E a morena de claro ia desfiando estas dúvidas com uma expressão mista de horror e de angústia, tipo hoje em dia não se pode confiar em ninguém e estamos em risco permanente de ingerir doses mais elevadas de sódio ou gorduras trans.
Nesta fase do campeonato contive um impulso muito grande de me dirigir à morena de roupa clara. Apeteceu-me perguntar se ela já tinha ouvido falar de Darfur sem ser nos noticiários da TVI ou nos programas matinais da Fátima Lopes, se ela sabia o que era o sódio ou uma gordura trans, se ela tinha sequer a noção de quantas pessoas morreriam HOJE de fome, se os agrotóxicos fossem abolidos… apetecia-me até explicar-lhe as raízes do termo agrotóxicos, uma designação idiota para os químicos que nos ajudam a dar de comer a milhares de milhões de pessoas que irremediavelmente morreriam sem o seu contributo. Mas não o fiz. Irritou-me mais o facto daquela senhora contaminada por uma forma de vida mais ou menos idiota, preocupada com a informação nutricional de um fruto de caju. Fruto que ela provavelmente nunca viu, e muito menos sonha ao que sabe quando apanhado directamente do cajueiro, ainda geladinho da noite fria que passou e bem sujinho da poeira do campo e, com sorte, até enfeitado com uma formiga, um ácaro microscópico e carregadinho de sódio, fibra, glúcidos e proteínas. Ou uma manga bem amarelinha, apanhada da árvore e pronta a lambuzar-lhe a boca, o queixo e o peito. Nunca viu, mas viu centenas de informações nutricionais de pacotes de supermercado. E nunca come ou bebe nada sem os ler primeiro. E indagar se o produto foi sujeito aos agrotóxicos.
Saí meio cabisbaixo da loja brasileira. Logo à noite vou comer goiabada-cascão. E a senhora morena vai ler mais umas quantas informações nutricionais. E eu vou adormecer com o gosto da goiaba e ela adormece com a cabeça povoada de palavrões que se farta de ler mas que, provavelmente está longe de lhe conhecer o significado.
.
Etiquetas: É a vida, politicamente correcto