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Este foi o meu segundo carro. O primeiro, como mandava a cartilha da época, tinha sido um feroz Mini, com 848 c.c. que o impulsionavam para uns fantásticos 140 km/h, se não fosse muito a subir, apesar de isso ser infinitamente «cagajessimal» perante o prazer de conduzir uma máquina daquelas.
Mas voltando ao meu segundo carro, um Autobianchi Primula 1200, uma variante pretensiosa da Fiat que resolveu aumentar as vendas com um produto razoavelmente dissemelhante. Este carro tinha 65 cavalos, era ruidoso e desconfortável mas suficientemente nervoso para bombear o sangue necessário às guelras de um condutor recém saído da adolescência. E tinha a característica de ser novo. Era o meu segundo carro, mas foi o meu primeiro novo. Daí que os primeiros quinze dias de vida do Prímula foram um regalo de fiabilidade. Só possível num carro novo e que se tornava ainda mais apreciada porque eu vinha de um carro que dia sim, dia não me obrigava a dar umas pancadinhas na bomba de combustível, para continuar a andar. Só que esses quinze dias foram só quinze porque fui uma vez fui interrompido à hora do almoço pelo dono de uma estação de serviço vizinha para me avisar que o senhor Freire (os portugueses, mesmo em África, sempre acharam que nos conhecemos todos uns aos outros pelo que eu deveria, supostamente, conhecer o Sr. Freire!!!) «tinha-le faltado os trabões e tinha esbarrado» contra o meu, que estava a ser paulatinamente sujeito a uma lavagem.
Um mês mais tarde, carro arranjado e pintado às custas do senhor Freire (um fotógrafo), meto-me à estrada em caravana com o meu pai para uma viagem de cerca de 200 km. Para quem conheça, quando se saia do asfalto ali pela Caconda e se tomava a estrada para a Chicuma, não asfaltada, até à Ganda, entrava-se numa estrada boa, mas perigosa. Trocado por miúdos, bom piso, mas escorregadio, uma espécie de saibro moído. Vale isto para dizer que sem saber bem como nem porquê, dei por mim fora da estrada com o Prímula com as quatro rodas no ar, após uma série de «reviangas» na tentativa de não sair da estrada.
Dentro do carro e sentado no tejadilho, virtualmente de pernas para o ar, via a gasolina a escorrer para o habitáculo, ao mesmo tempo que me lembrava dos filmes americanos, em que os carros explodiam por dá cá aquela palha. Estranhamente senti-me calmo, talvez pensando que os americanos eram uns exagerados, embora fosse aconselhável eu tentar sair daquela situação. Foi o que fiz. Movimentando-me com custo, consegui abrir uma das janelas traseiras (as da frente estavam bloqueadas) e saltar cá para fora. Meia hora mais tarde, o meu pai, que naturalmente dera pela minha falta, voltou para trás e apanhou-me. Olhámos para o carro e o carro ali ficou. Sem explodir, o que mais cimentou a ideia de que os americanos eram uns exagerados. Uma semana mais tarde, duas professoras de Sá da Bandeira, na mesma estrada, tiveram um acidente semelhante ao meu. Capotaram, o carro incendiou-se e as duas morreram. A partir daí comecei a acreditar um pouco mais nos filmes americanos.
A que propósito vem esta história? Porque se regista hoje um dia qualquer de sinistralidade rodoviária. E eu tive uma série de acidentes. Em todos tive, basicamente, muita sorte. Como neste que acabei de referir, quando estive mais de dez minutos dentro do habitáculo de um carro com um depósito de gasolina a verter gasolina em bica lá para dentro. Ah! E também porque está a chover, estou em casa e a recordação de um acidente de carro é um bom pretexto para «não falar daquele que, à boa maneira de Night Shyamalan, não podemos falar» porque ele zanga-se muito quando passamos as marcas.
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