Fantasminha, versão saudade
[1972]
A propósito da imagem do post anterior, lembrei-me do Judas. Era o meu marinheiro no Clube Naval de Maputo e chamava-se Marinheiro Judas. Sério, quem quer que lhe perguntasse o nome ele dizia: - Marinheiro Judas. De modo que ninguém sabia quem era o Judas mas toda a gente minimamente ligada aos barcos sabia quem era o Marinheiro Judas.
O Judas tomava-me conta do barco durante todos os anos que por lá trabalhei. Punha o barco na água, içava o barco da água, lavava-o e arrumava com desvelo os apetrechos de pesca, as canas e as rapalas, as colheres, penas e "teasers", limpava e mantinha os molinetes, arrumava as gavetas. Os coletes, os skis, as bóias, os picheiros, a “aspirina”, os rádios, enfim, toda a parafernália necessária a um fim-de-semana seguro. Em troca eu pagava-lhe uma quantia em dinheiro todos os meses. Dava-lhe ainda géneros alimentícios, roupa e por várias vezes fui dar injecções a uma das três mulheres que ele mantinha no Polana Caniço. Eu não sou enfermeiro, mas dar injecções foi coisa que aprendi na tropa. Quando não andávamos "a massacrar populações indefesas", a gente lá ia tratando os sobreviventes dos massacres dos outros. Os que roubavam e matavam nas aldeias para depois me matarem a mim, mas isso são contas de outro rosário que não vêm agora ao caso.
Durante muito anos, tive, assim, uma forte ligação ao Marinheiro Judas. Eu acho que ele era um homem feliz. Curiosamente, era um homem que sabia mais de mim que muita gente. Mas, voltando ao boneco do post anterior, só vi o Judas uma vez chateado. Calado, resmungão, triste, quase não falava comigo. Um dia perguntei-lhe mesmo que raio se andava a passar com ele e ele diz-me que toda a gente no Clube o andava a gozar porque eu tinha posto duas fotos dele coladas em cada um dos painéis laterais da cabine!
O Judas era gordo e as fotos eram nem mais nem menos que dois autocolantes do fantasma do Ghostbusters, exactamente este da imagem acima, que eu tinha comprado e, realmente, colado nos painéis exteriores da cabine. E o Judas não suportava mais a galhofa dos colegas até, porque, na verdade, havia uma vaga semelhança entre ele e o fantasminha.
Não tive coragem para continuar a contribuir para a infelicidade do Marinheiro Judas. Eu gostava dos bonecos, mas arranquei-os e deitei-os fora. E o Marinheiro Judas voltou a ser um homem feliz. Pelo menos até há dias, porque acabou de morrer. Não sei bem de quê, porque ele ainda era novo, devia andar por volta dos cinquenta. Apenas me chegou a notícia de que morreu. E, com ele, partiu uma personagem que fez parte da minha vida durante alguns anos. Que me apreciava e defendia até aos dentes. Para ele, o “Fame” (assim se chamava o barco) era o mais bonito de todos os barcos do Clube e eu era o melhor pescador.
Que descanse em paz!
ADENDA: tenho um diploma de honra que me foi concedido pelo Gabinete de Acção contra as Calamidades Naturais do Governo de Moçambique por ter contribuído para o salvamento de muita gente, quando de uma depressão tropical que assolou Maputo (Domoina) e fez transbordar os rios e matou muita gente. Fomos de barco e o Marinheiro Judas foi comigo, claro. Verdadeiramente, o mérito foi dele. Eu conduzia o barco e ele é que gritava para as mulheres, crianças e velhos empoleirados nas copas das árvores para saltarem para dentro do barco. Mas é como tudo na vida. No fim, quem recebeu o diploma e o prémio fui eu. Claro que fiz uma falsificação grosseira do documento através de uma fotocópia, acrescentei o nome dele e dei-lhe o prémio a ele. Ele mereceu-o, muito mais do que eu.
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