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Começo a ficar preocupado. Eu explico.
Eu tenho três pares de óculos. Porquê? Porque uns são para ver ao longe de dia e, portanto, mandei colocar lentes graduadas coloridas nos meus imutáveis «Ray Ban» e que uso sobretudo a guiar. Outros têm a mesma graduação dos «Ray Ban» mas não são coloridos. Uso para guiar à noite e, em alguns casos para ver televisão. Finalmente tenho um outro par para ler, escrever ou ver minudências, sempre que o seu detalhe requeira a acuidade que, aparentemente se começa a perder a partir dos quarenta, quarenta e cinco anos, e depois parece que é sempre a descer.
Ontem saí do carro, entrei em casa, pousei os óculos graduados não coloridos algures e fiz um par de coisas que, julgo, toda a gente faz ao chegar a casa. Só que, findas essas tarefas, quis os óculos. Olhei em volta à procura deles. Debalde. Nem sem balde. Os óculos não estavam em nenhum dos locais possíveis de se pousar óculos. Passei à segunda fase… procurá-los nos sítios mais inverosímeis, à medida que se me desenhava no espírito a ideia complacente que devemos usar para com as pessoas idosas quando não sabem onde põem os óculos. E procurei e procurei e procurei e… nada. Ao fim de uma hora de absoluto transe, entre seis palavrões em surdina (um foi sem ser em surdina mas acho que ninguém ouviu) e raios visuais faiscantes não me restou alternativa que não fosse desistir. Vi a Quadratura do Círculo de óculos escuros. Quando me fui deitar, procurei o controle do televisor do quarto… debalde. Revirei o quarto procurando o controle, cheguei a abrir gavetas, ao mesmo tempo que ia pensando porque carga de água eu haveria de colocar o controle numa gaveta. Cheguei a excomungar mentalmente a empregada, de certeza que só poderia ter sido ela a guardar o controle num local remoto, mas ao mesmo tempo pensei que ela está comigo há já uns anos e nunca o fizera antes, por que carga de água ela o faria agora? Ainda tive uma ténue esperança de que procurando o controle eu acabasse por encontrar os óculos, pois sei que quando a gente se esquece das coisas e se dá por vencido acabamos por vir a encontrá-las no sítios mais incríveis. Não encontrei o controle.
Hoje de manhã fiz, como habitualmente, o café. Eu tenho uma daquelas placas eléctricas que agente liga em «mode tip-toe», a coisa fica rubra e vai para não sei quantos mil graus. Há anos que uso aquilo sem problemas de maior ou dignos de registo. Pois ontem, e não me perguntem porquê se não vou ao médico, tirei a cafeteirinha do café e enquanto o vertia na chávena, nem eu sei como, deixei um pano em cima da rodela rubra. O pano incendiou-se de imediato e a cozinha ficou cheia de fumo. Do pano e do fumo que já me saía pelas orelhas, à medida que, em definitivo, eu me convencia de que devo estar a ficar velho. Senil. Relho. Geronte. Xéxé. Trôpego das ideias.
Ainda me aconteceu outra coisa no duche que passo por cima porque é demasiado embaraçoso e se falo nela toma a decisão inabalável de me mandar internar e eu não quero. Registo apenas que saí de casa e, pela primeira vez, juro, fechei a porta com a chave dentro de casa. Eventualmente, e após porfiados esforços e um esforço doseado de contenção de uma apoplexia que não dava jeito nenhum ter em frente à vizinha, consegui que me emprestassem, àquela hora, um escadote através do qual eu cheguei a uma janela que tenho sempre aberta, apenas fechada no corrediço. Subi o escadote e… adivinhem. O que é que estava no parapeito interno da janela? O que era? Isso, os óculos. E não me perguntem porque carga de água um homem de ideias escorreitas e sãos ideais chega a casa e vai colocar um par de óculos no parapeito interno da janela da casa de banho. Mas foi isso que aconteceu.
Assunto resolvido, meti-me no carro pensando nos meandros insondáveis da mente, tudo por mor daquelas esquisitas circunvoluções com que Deus Nosso Senhor achou por bem dotar o bicho homem e que, sabemos, vão pautando o nosso comportamento à medida que os anos vão passando. Quisera Ele ter-se lembrado de nos dotar com uma circunvoluçãozinha extra que nos impedisse de pousar óculos nos parapeitos de janelas, especialmente sem sabermos porquê, e nos ajudasse a perceber onde diabo, por vezes, colocamos o controle do televisor do quarto enquanto andamos à procura dos óculos que deixámos no parapeito da janela da casa de banho.
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