Oi Pai. Hoje farias anos. 94, uma idade bonita que poderias
ter atingido não fossem os Camel e o stress que te toldavam a paciência e
entupiam as veias de que precisavas para que o sangue te irrigasse convenientemente
o coração.
A mãe já partiu, está quase a fazer um ano, já deves ter
dado por isso, nessa vida «outra» em que nem tu nem eu acreditamos mas que dá
jeito aceitar quando queremos pensar que é bonito a família se ir mantendo
reunida, já que na vida «esta» nem sempre nos lembramos uns dos outros. E sabe
bem acreditar que agora tens, de novo, quem te faça o chazinho, te recorde onde
deixaste as chaves do carro e resmungue de vez em quando.
Por cá, pela vida terrena, as coisas vão cada vez mais na
mesma. Ia a dizer pior mas quando penso no assunto acho que não está pior. Está
como teria sempre de estar. Porque à medida que tenho crescido (o teu rapaz,
eu, tenho crescido, sim) vou percebendo que a vida assenta numa dinâmica muito própria,
numa girândola quiçá criada pelo deus em que nem tu nem eu acreditamos mas que
dá jeito invocar de cada vez que não sabemos explicar algumas coisas. Mas que o
absurdo tem tido lugar de bancada central, tem. Acontecem coisas que se
tivesses a prerrogativa de optar pela ressurreição provavelmente a denegarias,
mantendo-te no conforto e no sossego da alma.
Assim, muito pela rama, digo-te apenas que o Sócrates está (finalmente) preso,
O Guterres anda pelo mundo de mão dada com a Angelina Jolie a dizer que o mundo
está perigoso, na Europa vemo-nos gregos com os gregos, ainda há comunistas em
Portugal, o PS continua na senda das suas atribuições escatológicas, o Mário
Soares perdeu o resto da vergonha, as televisões tornaram-se impossíveis de
seguir, a Internet tornou-se uma ferramenta indispensável, tivemos de pedir um
resgate de novo (coisas de socialistas, tu bem dizias…), o Saramago morreu mas
continua a publicar, o futebol está na mesma (o Eusébio morreu, é verdade), o
Bush invadiu o Iraque depois de uns lunáticos perigosos deitarem as torres do
World Trade Center abaixo, os americanos elegeram um presidente negro que recebeu
logo um prémio Nobel, o novo Papa farta-se de ralhar com os europeus porque
deviam ter vergonha de não saberem receber bem as centenas de milhar de
refugiados que agora deram em atravessar o Mediterrâneo até Lampedusa, Cuba
ainda existe como a conheceste e agora têm a Venezuela e a Bolívia a bater
palmas (e uma tal de Dilma, brasileira, que já não é do teu tempo), enfim, nada
que te espantasse muito, se ainda por cá andasses.
A família está bem. Não te digo o que faz nem por onde anda
porque cada um dos nossos anjos da guarda te deve fazer relatórios periódicos.
Toma cuidado com os relatórios que receberes de mim porque podem estar
tendenciosos ou muito críticos, pela simples razão de que continuo a fazer algumas
asneiras, mas sempre com aquele espírito que me ensinaste a cultivar e do qual
não abdico, tomando-o como a mais rica herança que me poderias ter deixado. E o
importante é saberes que sou, SEMPRE, um homem feliz.
Mas tenho saudade de ti, muita saudade. Logo à noite sou bem
capaz de jantar sozinho, mas tenho ali um resto de uma garrafa de espumante que
não te digo de onde trouxe porque o meu anjo da guarda deve ter-to dito. E vou
beber um trago. Por ti, Pai. Parabéns. E envio uma mensagem dizendo, «Para ti,
Pai, do Teu Rapaz».
A FOTO: A foto é de um dos teus recantos favoritos. Clica nela para veres grande. Onde nos
levaste, algumas vezes a fazer campismo selvagem. Lá está o Poio do Judeu
(nunca me conseguiste explicar a origem do nome), o Espinhaço do Cão e os Cântaros.
Há muito poucos dias passei aqui e, finalmente com sol, pude referir pela
enésima vez: - aqui, na Nave de Santo António, costumávamos acampar, uma vez o
meu pai tirou uma foto a uma cabra a correr e pôs uma legenda dizendo «e nunca
mais a vimos», lá em cima é o Poio do Judeu, subíamos o Espinhaço do Cão muitas
vezes a pé e a montanha do meio é o Cântaro Magro que o meu pai escalou com a
minha mãe… uma ladainha que só pára quando oiço: -Ui, já me contaste essa
história mil vezes!
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