segunda-feira, junho 22, 2015

Parabéns


[5257]

Oi Pai. Hoje farias anos. 94, uma idade bonita que poderias ter atingido não fossem os Camel e o stress que te toldavam a paciência e entupiam as veias de que precisavas para que o sangue te irrigasse convenientemente o coração.

A mãe já partiu, está quase a fazer um ano, já deves ter dado por isso, nessa vida «outra» em que nem tu nem eu acreditamos mas que dá jeito aceitar quando queremos pensar que é bonito a família se ir mantendo reunida, já que na vida «esta» nem sempre nos lembramos uns dos outros. E sabe bem acreditar que agora tens, de novo, quem te faça o chazinho, te recorde onde deixaste as chaves do carro e resmungue de vez em quando.

Por cá, pela vida terrena, as coisas vão cada vez mais na mesma. Ia a dizer pior mas quando penso no assunto acho que não está pior. Está como teria sempre de estar. Porque à medida que tenho crescido (o teu rapaz, eu, tenho crescido, sim) vou percebendo que a vida assenta numa dinâmica muito própria, numa girândola quiçá criada pelo deus em que nem tu nem eu acreditamos mas que dá jeito invocar de cada vez que não sabemos explicar algumas coisas. Mas que o absurdo tem tido lugar de bancada central, tem. Acontecem coisas que se tivesses a prerrogativa de optar pela ressurreição provavelmente a denegarias, mantendo-te no conforto e no sossego da alma.

Assim, muito pela rama, digo-te apenas que o Sócrates está (finalmente) preso, O Guterres anda pelo mundo de mão dada com a Angelina Jolie a dizer que o mundo está perigoso, na Europa vemo-nos gregos com os gregos, ainda há comunistas em Portugal, o PS continua na senda das suas atribuições escatológicas, o Mário Soares perdeu o resto da vergonha, as televisões tornaram-se impossíveis de seguir, a Internet tornou-se uma ferramenta indispensável, tivemos de pedir um resgate de novo (coisas de socialistas, tu bem dizias…), o Saramago morreu mas continua a publicar, o futebol está na mesma (o Eusébio morreu, é verdade), o Bush invadiu o Iraque depois de uns lunáticos perigosos deitarem as torres do World Trade Center abaixo, os americanos elegeram um presidente negro que recebeu logo um prémio Nobel, o novo Papa farta-se de ralhar com os europeus porque deviam ter vergonha de não saberem receber bem as centenas de milhar de refugiados que agora deram em atravessar o Mediterrâneo até Lampedusa, Cuba ainda existe como a conheceste e agora têm a Venezuela e a Bolívia a bater palmas (e uma tal de Dilma, brasileira, que já não é do teu tempo), enfim, nada que te espantasse muito, se ainda por cá andasses.

A família está bem. Não te digo o que faz nem por onde anda porque cada um dos nossos anjos da guarda te deve fazer relatórios periódicos. Toma cuidado com os relatórios que receberes de mim porque podem estar tendenciosos ou muito críticos, pela simples razão de que continuo a fazer algumas asneiras, mas sempre com aquele espírito que me ensinaste a cultivar e do qual não abdico, tomando-o como a mais rica herança que me poderias ter deixado. E o importante é saberes que sou, SEMPRE, um homem feliz.

Mas tenho saudade de ti, muita saudade. Logo à noite sou bem capaz de jantar sozinho, mas tenho ali um resto de uma garrafa de espumante que não te digo de onde trouxe porque o meu anjo da guarda deve ter-to dito. E vou beber um trago. Por ti, Pai. Parabéns. E envio uma mensagem dizendo, «Para ti, Pai, do Teu Rapaz».

A FOTO: A foto é de um dos teus recantos favoritos. Clica nela para veres grande. Onde nos levaste, algumas vezes a fazer campismo selvagem. Lá está o Poio do Judeu (nunca me conseguiste explicar a origem do nome), o Espinhaço do Cão e os Cântaros. Há muito poucos dias passei aqui e, finalmente com sol, pude referir pela enésima vez: - aqui, na Nave de Santo António, costumávamos acampar, uma vez o meu pai tirou uma foto a uma cabra a correr e pôs uma legenda dizendo «e nunca mais a vimos», lá em cima é o Poio do Judeu, subíamos o Espinhaço do Cão muitas vezes a pé e a montanha do meio é o Cântaro Magro que o meu pai escalou com a minha mãe… uma ladainha que só pára quando oiço: -Ui, já me contaste essa história mil vezes!

*
*

Etiquetas: