Clarividente crónica de Alberto Gonçalves no DN, que vale a pena ler até ao fim. Negrito da minha responsabilidade.
É extraordinária a quantidade de gente capaz de interpretar os sentimentos expressos nas manifestações de rua. Não possuo tal dom. Ouço e leio as palavras de ordem (pelo televisor, salvo seja) e acabo mais confuso do que comecei.
Ao que tudo indica, o povo em protesto não quer aumentos de impostos e, em simultâneo, não quer a redução na despesa que compensaria a manutenção dos impostos tal como estão ou estavam. O povo pretende a expulsão da troika e não se encontra minimamente preparado para a penúria que a partida da troika implicaria. O povo rejeita a austeridade sem perceber que a alternativa é uma austeridade maior e menos meiga. O povo está contra o Estado e vive apavorado com a ideia de que o Estado recue nas suas vidas. O povo insulta o Governo que desastradamente tenta corrigir as contas públicas embora não deseje que as corrija com acerto, nem dedique grandes insultos aos governos que deliberadamente transformaram as contas públicas na ruína actual. O povo, em suma, é realista à maneira do Maio de 68: pedindo o impossível. Impossível no sentido de que não tem pés nem cabeça.
É natural que o povo, às vezes constituído por serventes partidários, às vezes por gente em autênticas dificuldades, às vezes por sujeitos que berram qualquer coisa, caia nesta teia de contradições. Não deveria ser natural que as contradições chegassem a jornais ditos de referência sob a forma de colunas de opinião. A opinião é livre? É, e Deus nosso Senhor sabe o quanto agradeço a benesse. Por acaso, a irracionalidade também não conhece amarras, donde a emergência de textos do calibre do de José Vítor Malheiros, no Público de 25 de Setembro.
O título do texto ("A Dívida Existe Mesmo?) já arrepia. O pior é que após a pergunta do título o sr. Malheiros gasta uma data de caracteres a responder "não". Não perderei tempo a comentar os, digamos, "argumentos" do homem (o João Caetano Dias fê-lo brilhantemente no blogue Blasfémias). Basta resumi-los: para o sr. Malheiros, o défice e a dívida que decorre dos sucessivos défices (ele pensa ser ao contrário) são uma história mal contada, um provável estratagema para oprimir as massas que nada justifica, excepto talvez os favores às construtoras e aos bancos.
Perante isto, o que fazer? Podemos, claro, organizar uma colecta a fim de enviar o sr. Malheiros para um curso de Economia ou um merecido descanso. Porém, podemos igualmente aproveitar o mote e estender a tese ao que nos aprouver. A dívida não existe. O Estado esbanjador não existe. Os gastos com os salários e as prestações sociais não existem. Os custos da educação e da saúde não existem. As autarquias e as regiões autónomas não existem. As fundações e as empresas públicas não existem. O Magalhães não existe. Os estádios do "euro" não existem. Os pareceres, as consultorias e os estudos encomendados a amigos não existem. Os subsídios às energias "renováveis" não existem. Os apoios à "cultura" não existem. O socialismo não existe. O eng. Sócrates nunca existiu. E é duvidoso que, a médio prazo, o próprio país exista.
O exercício não é fortuito: se passarmos por doidos varridos, o mundo exterior comove-se e dá-nos um desconto moral. Infelizmente, dado que ninguém investe na demência, o mundo não nos dará um desconto material. Mas, de acordo com a escola financeira do sr. Malheiros, dinheiro não nos falta.
Terça-feira, 25 de Setembro
Objectividade pelos ares
A mulher de Mitt Romney viajava num avião que sofreu um pequeno incêndio e se encheu de fumo. A peripécia foi inconsequente. Ou nem por isso: mais tarde, numa sessão de campanha, o candidato referiu o assunto já ao lado da esposa, dizendo não perceber porque é que as janelas dos aviões não abrem para deixar entrar o ar. Tratou-se, conforme os correspondentes do Los Angeles Times e do New York Times (nenhum suspeito de simpatias republicanas) asseguraram, de uma brincadeira, aliás evidente no vídeo do episódio. É claro que a internet canhota local tentou remover as declarações do contexto e apresentar Romney como um tontinho, mas para efeitos internos a coisa morreu ali. Externamente, a coisa estava apenas a começar.
Um pouco por toda a parte, incluindo em muitos países europeus e incluindo, quase sem excepções, os media portugueses, o "jornalismo" a que temos direito diagnosticou em uníssono a idiotia terminal de Romney, o qual, segundo a opinião geral, gostaria de facto que as janelas de um jacto comercial descessem à semelhança das de um Fiat Punto. A veneração cega do actual inquilino da Casa Branca, misturada com a tendência para ver em cada membro do GOP um monumento à ignorância, dá nisto: uma mentira transformada em "notícia" e um espectáculo em que sujeitos com dificuldade para alinhavar uma singela peça sem erros ortográficos discorrem sobre a boçalidade de um discípulo de Stanford e Harvard. Boçal é o fanatismo.
Boçal e distraído, já que a reacção a gafes imaginárias impede inúmeros "jornalistas" de reagirem a gafes reais. Que eu saiba, por cá ninguém se riu após um político americano ter afirmado que os EUA construíram o "primeiro comboio intercontinental". Ou após um político americano ter exaltado o bom exemplo da FedEx por oposição ao dos correios públicos enquanto pretendia defender um sistema de saúde financiado pelo Estado. Ou após um político americano ter confessado que não sabia falar austríaco. Ou após um político americano ter declarado que percorrera 57 estados da União. Ou após um político americano ter classificado as recentes fúrias no Médio Oriente (que assassinaram um embaixador de Washington na Líbia) de "lombas na estrada". Em qualquer dos casos, o político americano era Barack Obama, um simpático colecionador de cargos públicos e um presidente medíocre que, ainda assim, paira largos furos acima do político indígena médio.
A terminar: nas circunstâncias adequadas (altitude, despressurização, etc.), os aviões podem voar com as janelas abertas. Fechadas sem remédio só algumas visões do mundo.
Quarta-feira, 26 de Setembro
A marca de Zorrinho
Não me canso de admitir algo de admirável no Partido Socialista: a rigorosa e absoluta falta de vergonha. Em seis miraculosos anos, o PS conseguiu duplicar a tendência para o desastre lentamente acumulada nas décadas anteriores e enfiar a pátria amada na bancarrota e na dependência de esmolas caríssimas. Em circunstâncias ideais, a derrota eleitoral de 2011 teria lançado os autores da façanha para um justificado limbo ou, no que respeita aos principais responsáveis, para a cadeia. Em Portugal, quase (quase) todos andam aí, a instruir os incréus sobre a arte de bem governar e a recriminar, com voz pungida, a má governação.
Esta semana, o descaramento maior coube a Carlos Zorrinho, o qual, a propósito dos pífios "cortes" nas fundações, lamentou com total precisão e nenhuma legitimidade: "Quando é para aumentar os sacrifícios aos portugueses, é sempre mais do que aquilo que esperamos; quando é para cortar despesa, é sempre menos do que aquilo que esperamos." Brincadeira? Parece. Mas não é. É apenas o PS a confiar na amnésia terminal do eleitorado.
Em matéria de amnésia, nem vale a pena notar o impulso do PS a incontáveis fundações. Sobretudo, importa descontar a facilidade com que o PS alterna as exigências de "investimento" público com a mágoa de que a despesa pública não seja devidamente reduzida. O primeiro sermão tem a atenuante da coerência face ao modus operandi que nos deixou na penúria. No segundo, trata-se de puro desplante. E se apetecer ao cidadão médio comparar o caso ao do gatuno que condena as escassas medidas de segurança depois de esvaziar o banco, a comparação é redundante: é literalmente isso o que se passa.
O pior é que, se calhar, o cidadão médio prefere o encanto do logro a uma dose de realidade e não está para aí virado. Se calhar, a acreditar nas sondagens recentes, uma quantidade suficiente de pessoas esqueceu-se de facto de quem as colocou nos limites da indigência. Se calhar, os drs. Zorrinhos deste mundo sabem o que fazem e o que dizem. Se calhar, o PS merece o país, e o país merece o PS.
.