Domingos no aeroporto
Aeroporto de Lisboa - Anos 50
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Foi num pinhal junto à gare que o meu pai me fotografou todo
nu, 3 dias depois de eu nascer, ao sol daquele dia de Verão. Três ou quatro
anos mais tarde, já o aeroporto se tornava destino obrigatório dos meus passeios
de domingo. O meu pai, eu e o meu irmão ainda mais novo. E o sabor da aventura
nascia poucos metros depois de sairmos de casa, ali ao Bairro da Encarnação. Porque cada passeio era uma
série desfiada de acontecimentos fantásticos, todos eles novidades, repetidos
quase todos os domingos mas sempre novidades, ou não fosse o meu pai verdadeiramente
exímio em fazer de um acto banal uma espantosa novidade. Atravessávamos o
pinhal, hoje cortado pela 2ª circular e íamos ver os aviões num aeroporto quase
deserto, nos anos cinquenta, mas com o fascínio dos aviões ali pertinho, onde
entrava e saía gente engravatada, sabe-se lá de ou para onde. A varanda
descoberta permitia a proximidade e cada avião que descolava ou aterrava servia
de mote a mais uma das incontáveis histórias do meu pai. Acho que foi ali, no
aeroporto, que comecei a perceber o que era ter um pai. Tanto nas explicações
sobre os aviões, de onde vinham, para onde iam, como voavam, de que «marca» eram
(muito miúdo eu sabia que a Douglas tinha o DC3, Dakota, o DC4, Skymaster, o
DC6, o DC7 e o DC7–C, a maravilha dos aviões. E a Lockheed tinha os veneráveis Constellation),
como na suprema aventura de nos colocarmos no topo sul da pista (à altura, a
única, por debaixo da sebe mesmo contígua à rotunda do relógio), ouvir e sentir
os motores, um por um, em teste, acelerados ao máximo, até o avião rolar pela
pista fora. Depois, era o «Buraco dos Bichos», uns montes de areia feios e amarelados,
penso que seja onde se situa hoje a Alta de Lisboa, onde a fealdade dos morros se
transformava na beleza aventureira do desconhecido, já que o meu pai chamava à
zona o «Buraco dos Bichos», um sítio ermo onde nós pisávamos o solo com
respeito e esperando que a todo o momento aparecesse um bicho que jamais
apareceu, mas de cuja existência nunca duvidávamos, pois se o meu o dizia, era
porque os havia.
Era extraordinária esta relação com o aeroporto. Durante
anos seguidos me entreguei com deleite ao passeio ao «Buraco dos Bichos», não
só pela secreta esperança e aventura de um dia saber que bichos eram aqueles,
como pelas peripécias acontecidas até lá chegarmos. Para além do dia de
permanente folguedo de um pai enorme, bonito, paizão, mas tão miúdo como nós
quando brincava connosco.
Mais tarde, o aeroporto serviu-me de porta de entrada e de
saída por inúmeras vezes, pela frequência com que eu me deslocava a Lisboa,
durante o ano e durante anos. Em quase todas elas, o meu pai lá estava. Ou
vestindo um sobretudo, se fosse Inverno, ou trajando um fato claro de Verão.
Era a figura habitual da minha chegada, ele sabia que eu saía do avião e ia
directo à Avis levantar um carro, mas queria estar sempre presente. E quando eu
me ia embora, era ele que me deixava à porta e ia depois entregar a viatura.
Esta pequena história serve para dizer que foi ali, também, que vi o meu pai pela última vez. Deixou-me à porta das «partidas» mas, dessa
vez, vá lá saber-se porquê, ele saiu do carro. Olhei para trás e vi a sua figura
imponente e elegante fora do carro atirando um «boa viagem, meu rapaz»,
enquanto acenava lentamente a sua mão direita. Uma cena que hoje se mantém viva
na minha memória, ao pormenor da roupa que ele vestia, incluindo uma gravata
vermelha com umas pintas douradas ou amareladas. E lembro-me porque nunca mais
o vi. Vi-o ali, no aeroporto, pela última vez, tanto como pela primeira vez. Porque foi ali,
no aeroporto, que, como disse atrás, eu «comecei» a ver o pai que tinha.
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Etiquetas: intimista
3 Comments:
Nelson, Gostei muito deste post porque também para mim o Aeroporto foi lugar onde fui muitas vezes com o meu pai. Lembro-me bem da varanda e deste gradeamento. No meu Papoila com a data de Domingo 12 de Fevereiro 2012 podes ver-me pela mão da minha mãe subindo as escadas da porta principal...adoro aquela foto!
xx
Grande filho!
Adorei. É um hino ao amor. Ao amor de um filho pelo pai que já partiu. É, também, um olhar pela magia de ser pai.
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