Eu tenho um médico de família. Não sabia, mas tenho. Disse-mo a senhora minha mãe, a idosa mais fresca, bonita e saudável que conheço, pois que de médicos percebe ela. Há cerca de três anos que eu não ia ao médico. E ontem, em conversa com a mãe e uma irmã, queixei-me duma dor no pescoço. Como sou fumador, o diagnóstico de família foi imediato e fulminante. Cancro da garganta. TENS de ir ao médico, ...ito. Eu já tenho filhos quase da idade da minha mãe, mas ela ainda hoje me junta o sufixo “ito” ao nome o que, circunstancialmente, se torna, no mínimo, embaraçoso. O pânico familiar foi tal e porque eu realmente sou fumador e acordei com a tal dor no pescoço, resolvi ir ao médico. E hoje , fui. Preparei-me psicologicamente (pelo que ouvia, tive quase para levar farnel, mas contive-me) e fui ao Centro de Saúde dos Olivais... eu moro 45 km a oeste, mas nasci para aqueles lados (sou conterrâneo do Santana Lopes hi, hi, hi) e como a minha mãe é que me tratou dessas minudências, o meu “médico de família” é nos Olivais. Fui. Preparado para o pior, mas admitindo a ideia de que sou um exagerado, um azedo, um maldizente, afivelei uma expressão cordata e lá fui. A chegada foi impressiva. O Centro de Saúde é grande e moderno... lugar para o carro, era só escolher, entrei, perguntei pelo Dr. Fulano, recebi uma indicação polida e dirigi-me ao “Atendimento B”. Atendeu-me uma senhora simpática, disse-lhe ao que ia e ela explicou-me que estava com sorte porque tinha uma vaga às duas da tarde. Cada vez mais convencido que sou mesmo exagerado, ainda tive tempo de ir a escritório, mexi em meia dúzia de papéis e dez minutos antes das duas, lá estava de novo. A senhora simpática tinha sido substituída por um moçoilo dos seus 25 anos... não achei graça, mas grave também não achei. Disse ao que eu ia, mostrei o catão de utente e o rapaz disse que me podia sentar. De repente, “tudo” começou. À minha frente estava uma porta fechada com uma indicação de WC e um enooooooooorme letreiro a preto dizendo AVARIADA. Achei estranho... por circunstâncias de trabalho fui colocado pelo menos em três países diferentes e em todos eles se avariam casas de banho,. Mas eu estava habituado a letreiros do género “OUT OF ORDER – Please use next door...” ou a door so and so, ou mesmo em português “Avariada – por favor use a porta número tal”. Mas ali, não. AVARIADA” e “mainada”. Lendo-se a palavra, em caracteres garrafais até parece que diz “Avariada, não me chateie , se está apertado, desenrasque-se”. Concedi ao facto ainda alguma compreensão (se calhar tinha-se acabado a tinta do computador ou não haveria mais casas de banho perto...) e continuei esperando. Às 3 da tarde e sem sinal de vida do “doutor” (vocábulo que eu mais vezes ouvi na algaraviada das senhoras que nos atendem). Uma senhora idosa, obesa e com uma perna inchadíssima perguntou ao tal rapazola... “O Dr. Fulano já chegou há mais de 15 minutos, porque é que ainda não começaram a chamar?” Ao que o rapazola retorquiu “Oh minha senhora, pregunte-lhe vócê, chegue lá e pregunte, olhe lá porque é que chegou tarde?” Aí já não me contive e disse ao rapazola que estava a ser mal educado e um péssimo profissional. Fi-lo num tom enérgico, ele ainda balbuciou “mas a culpa não é nossa”, lá lhe disse que a culpa não era dele, mas nossa também não e que a obrigação dele era , pelo menos, atender os doentes com educação e, se possível, dada a condição e idade da senhora, com algum carinho. O rapazola calou-se... o “doutor” apareceu pela recepção umas 3 ou 4 vezes... dava uns recados ao rapaz e em cada recado dizia “mas não se esqueça que Segunda não estou cá, estou em Bruxelas ( e olhava à volta...)”. Claro senhor doutor, eu sei. Às 4 da tarde, exactamente duas horas e dez minutos depois de eu ter chegado ao Centro de Saúde, ouvi uma voz chamar pelos meus dois primeiros nomes...nem sinal de apelido. Sendo que o meu segundo nome é Manuel (juro que não tenho culpa...) e Manéis há muitos, ainda olhei á volta. Não vendo reacções achei que era mesmo comigo. Abri uma porta e vi um extenso corredor, comprido e muitas, muitas portas, cada qual com um nome afixado. Até que ...”gotcha”, lá esteve ele. O nome do meu médico de família. Gente à volta, nem cheiro. Estando a porta fechada, ainda hesitei... mas tendo acabado de ouvir o meu “quase” nome e vendo o nome do “doutor” na porta, acabei por entrar. Lá estava ele, um mocetão de trinta e poucos anos mas com cara de quem queria ter mais e sabia que Bruxelas era na Bélgica, tamborilando na secretária e mandando-me sentar com um olhar condescendente. Eu até ia com a farda de gente importante, gravata de seda, fato de bom corte, mas acho que o homem nem olhou para mim. “então... diga lá”. Juro que estive quase para dizer “lááááááá”, mas achei que estava mesmo com uma dor aguda, localizada e permanente no pescoço e decidi que o melhor era sair dali pelo menos, observado. E ”lá” disse:- Olhe... uma dor assim - assim... e a resposta veio imediata: Ah isso é uma “adenite”, sabe temos tendões nessa área e isso é, com certeza, uma adenite. Tendinite? Perguntei eu. Não, Adenite, adenite. Eu fiquei a olhar para ele e eu seja ceguinho se não me apeteceu perguntar-lhe se ele conhecia o ciclo evolutivo da Laphygma exempta... mas a dor, a tal dor, lá estava. Aguentei e ainda balbuciei... pois... eu até já fiz uma palpação no local (pensando eu que o comovia e ele , pelo menos, me faria palpação adequada para ver se tinha algum caroço, algum papo, edema ou correlativo, mas debalde). Adenite, diz-me o passageiro do voo TP 522 da TAP da próxima Segunda Feira com destino a Bruxelas. Calado, olhei para o homem, e o telefone toca. Ele atende... diz “mas não lhe disse que estou em consulta?” – pausa – lá atendeu, resmungou uns semi-vocábulos e continuou a tamborilar a mesa. Era a mulher com certeza. Nos semi vocábulos, o vocábulo inteiro Bruxelas, ainda foi citado pelo menos duas vezes, mas não passou dali. Eu calei-me, quer dizer, já estava calado... e diz-me o doutor. - Olhe, não quer fazer uma colonscopia? E eu... - cólon? Sim, sabe, já fez alguma? E eu disse que não. Pois, mas olhe que depois dos 40 convém... Meditei um pouco e achei que entre sair dali com uns comprimidos de Voltaren e um pedido de colonscopia, talvez não fosse mau rentabilizar os € 2 da taxa e, mal por mal, sempre ficaria a saber se tenho tudo bem com o cólon. Acabada a “consulta” (o telefone tocara outra vez...), dirigi-me ao rapazola, mostrei-lhe o pedido do exame ao cólon... o rapaz fica meio atrapalhado... pergunta a uma colega quarentona que atacava furiosamente o computador e a colega responde: Uiiiiiiiiiiiii... isso.... mas isso é dificílimo... uiiiiiiiiiii. E eu, assarapantado pelo uiiiiiiii, sem saber se aquilo era difícil porque doía ou por outra razão qualquer, fiz cara de parvo com certeza, porque a mulher disse-me que era “complicadíssimo”, NINGUÉM queria fazer aquele exame pela caixa, que me ia dar três ou quatro números de telefone de clínicas mas o melhor mesmo era eu pagar e que era de um dia para o outro mas que devia custar entre € 350 a 400. Ahhhh, lá estou a exagerar... antes de sair, o “doutor” perguntou-me se não era melhor eu fazer os exames de rotina, hemograma, urina tipo II (estive quase e para lhe dizer que se fosse a tipo III ainda queria, mas não disse). Eu disse que sim, claro. Bom... vim-me embora... rumei aos tais 45 km a Oeste e como ainda tinha tempo fui a uma clinica perto de minha casa. Mostrei os exames, perguntei quando é que lá podia voltar... a menina olhou, olhou, remirou... e é quando eu olho para a requisição dos exames. Horror... eu julgava que já não havia “daquilo”. Mas há. A tal letra de médico. A tal caligrafia que ninguém consegue decifrar, o que cria um verdadeiro factor orgástico aos médicos que têm letra de médico. Provavelmente porque a acham uma imagem de marca. Acham mal, digo eu. Como atrás referi, já andei por outros países. Nunca, fora de Portugal, vi uma receita que não fosse minimamente legível, inclusive receitas de médicos portugueses... mas aqui, é isto. Quando eu era pequenino já achava que aquela cena da ”letra de médico” era forçada e, até, cultivada, pelos próprios médicos. Pensei, ingenuamente, que a minha geração seria diferente. Não é. A “letra de médico” e as mentalidades continuam. Porque não há ninguém que me consiga convencer que qualquer médico, se quiser, não consiga escrever duma forma legível. Mesmo com letra feia. Receber uns rabiscos como eu recebi hoje é não só uma evidente falta de educação para os pacientes como um sinal inequívoco de que as vaidadezinhas continuam e, com elas, uma clara manifestação de arrogância idiota..