Os emplastros
O povo, seja o que for que isso signifique, gosta de falar para o fórum da TSF. Gosta igualmente de falar para a Bancada Central, outro programa de rádio, e para os directos de televisão. O povo abomina e achincalha o “emplastro” tripeiro, que se popularizou por se “mostrar” em quase todos os directos da televisão. Tal como adorou ver o mesmo “emplastro” num programa de Herman José, a ser por este gozado com uma total ausência do pudor que Herman não tem. O povo goza e frui o “emplastro” sem se dar conta que ele é, também, um “emplastro”. O povo gosta e quando o povo se alcandora a lugares de poder e projecção pública gosta de dar voz ao povo. É barato, é popular e dá milhões. Por isso, o povo é cada vez mais achincalhado e remetido à sua eterna e atávica forma de estar e de ser, gemendo com as desgraças e rindo-se delas, e delas fazendo o seu próprio meio de evidência.
Quem ouvir o povo falar para um dos programas que acima citei fica a odiar o povo e a ter pena dele. E eu penso que o povo quando chega ao poder ou a lugares de responsabilidade cívica deveria ter mais respeito e sentido cívico pelo povo que não tem poder nem projecção pública. Mas não tem. Usa-o e manipula-o, contribuindo para este estado de coisas.
O problema é que somos todos povo e os tiques do povo mantêm-se mesmo quando mandamos ou somos figuras públicas. O povo mantém-se num caldo de cultura onde permanece a figura parola, saloia, atrasada e mesquinha, invejosa e a maldade das crianças que seria suposta desaparecer com a idade. A desconfiança, a inveja, ignorância e o mais patente desinteresse por tudo quanto possa verdadeiramente interessar à vida nacional..
Terá sido sempre assim antes... mas quando eu era jovem já me ia apercebendo disto mesmo e gerei subconscientemente a ideia de que quando “eu fosse grande” as coisas seriam diferentes e o povo teria um papel mais interventivo e uma consciência cívica bem mais elevada. Mas, infelizmente, não tem. Não foi a quase erradicação do analfabetismo que melhorou fosse o que fosse. Pelo contrário, eu penso que é menos mau o analfabetismo que a iliteracia. Saber ler e não saber interpretar o que se lê é bem mais gravoso e nefasto para a nossa sociedade. Daí que os acontecimentos verdadeiramente importantes da vida nacional sejam, frequentemente, enquadrados numa “lógica de povo”, pior, de povo atrasado, retirando-lhe à partida as ferramentas necessárias para uma análise minimamente objectiva e consentânea com a realidade e com o interesse nacional.
Isto a propósito das opiniões do “povo” que ouvi hoje na TSF, sobre o fim do Serviço Militar Obrigatório (SMO). Ouvi uma panóplia de opiniões, todas elas a anos-luz da génese da questão, qual fosse a de comentar sobre se a recente medida do governo em decidir o fim do SMO era desejável ou não. Claro que quem gosta de Portas (surpreendentemente uns quantos...) acha que foi óptimo. Quem não gosta de Portas, acha que foi uma catástrofe nacional. Pelo meio uns comentários avulso de “antigos combatentes das colónias” que achavam que antigamente “aquilo é que era”, outros achavam que os “oficiais tinham andado a mamar durante anos” e um, até, que disparou com alacridade que tinha “fugido” do serviço militar, porque só os fascistas é que iam à tropa, durante a guerra das colónias. Tudo, como se vê fora do contexto traçado pela estação de rádio, mas fortemente desejável do ponto de vista de audiência. Foi degradante, triste, não ter conseguido uma única opinião minimamente sustentada e no contexto do programa. Se achavam que o fim do SMO era bom ou mau e porquê. Falou ainda o omnipresente general Loureiro dos Santos, através do qual fiquei a saber que uma Brigada era composta por 4.000 homens, Já não foi mau, para o miliciano que eu fui.
A coisa esteve sempre vestida de cores de claque futebolística e da mais arrepiante falta de sentido estético, objectivo e racional. Isto é triste, mas mais triste é verificar que não só o dia a dia dos portugueses se mantém nesta apagada e vil tristeza como ela, a vil tristeza, é utilizada objectivamente pelos interesses das rádios e das televisões. Teria sido interessante, por exemplo, ouvir alguém que se lembrasse de questionar se à redução dos efectivos das praças para 16.000 homens corresponderia o sentido da proporcionalidade na redução dos efectivos das classes de sargentos e dos oficiais. Mas não, O importante era malhar em Portas ou endeusá-lo. Ou, ainda, debitar vacuidades que serviam para coisa nenhuma.
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