A caça - Todos os anos em Outubro!
Vem aí a “caça”. Todos os anos é isto. Intervenções populares na TV, notas do governo, zangas, jogo político, leis, decretos, coutadas, concessionados, livres, uma trapalhada que durará umas semanas, durante as quais várias espécies serão abatidas, do javali criado quase em condições “de aviário” ao gracioso e minúsculo tordo, passando pela lebre. Pelo meio, um punhado de caçadores feridos ou até mortos na refrega.
Eu tenho dois caçadores –tipo portugueses no meu imaginário:
- O que fica impressionado quando alguém (não caçador) tem o desplante de também conhecer o hotel “Idanha-Caça” (há outros, claro) e que para lá se dirige com a amiga a quem vai impressionar durante um longo fim semana, com histórias incríveis de caçadas que ele já fez no Quénia, na África do Sul ou no Botswana, está ali por caso... este ano os negócios não lhe permitiram viajar, de modo que vai matar um javali para não perder o gosto à coisa. A amiga ouve-o embevecida e antecipa o que vai contar às amigas dela na Segunda-feira seguinte, que isto de sair com um caçador não é para todas. Este caçador é normalmente licenciado, gestor de empresa, vaidoso e semi-imbecil. Também há médicos. Gasta uma fortuna em fatos de caça, cartucheiras, botas, chapéu, armas (têm de ser várias, matar um javali pode exigir diferentes tipos de arma, consoante o ângulo de tiro, a distância, se é macho ou fêmea - o javali, claro- e não se regista no hotel sem primeiro telefonar ao autarca da terra a dizer que vai. O autarca aparecerá mais tarde, no hotel, grita “ora viva senhor doutor” à entrada da recepção, como vai senhor doutor à entrada do bar e, uns decibéis mais abaixo, “está tudo a correr bem senhor doutor” ao apertar-lhe a mão, esperando que o senhor doutor o mande sentar, ao mesmo tempo que manda um olhar misto de guloso e bajulador, tipo “estes gajos arranjam com cada febra”, para a acompanhante. Depois de toda a sala do bar ficar a saber que ele conhece o senhor doutor e do senhor doutor disso mesmo tomar boa nota, a conversa flui sobre a vila, o tempo, o “inferno” do trânsito de Lisboa, nada como a pacatez e a qualidade de vida dos pequenos centros e, raramente, de caça. A caça, essa, ficará circunscrita ao javali que a gerência do hotel discretamente lhe disponibilizará no dia seguinte para receber um tiro certeiro;
- O outro tem barriga, bigode, nunca foi ao Quénia, mas ninguém como ele conhece os hábitos dos patos, dos tordos, rolas, narcejas, lebre e coelhos, perdizes, codornizes (sim, essas mesmo, essas minúsculas e simpáticas aves cujos ovos coloridos e horrivelmente insípidos se vende nos supermercados), e outras espécies cinegéticas, claramente em vias de extinção, já que não é fácil “criar” lebres ou perdizes como se criam os javalis. Reúne-se com os amigos no café da vila, domina o ambiente e a conversa, tem dinheiro, parte do qual empatou desbragadamente no equipamento, dispara umas dezenas de tiros durante o dia e irá ostentar com um indisfarçável orgulho meia dúzia de passarinhos à cintura. Com sorte, ostentará um coelho, ou uma lebre. Acaba o dia de novo, com os amigos, a quem contará em pormenor as peripécias do mesmo, como falhou aquele tiro assim e acertou o tiro assado. Após o que começa a dizer mal do governo, dos políticos, das portarias, dos fiscais, “eles andam é todos ao mesmo”, isto é uma miséria, qualquer dia nem caça há”, mais o f....que ainda não percebeu que a caça é livre e que se o vê numa esquina lhe dá com a caçadeira nos cornos.
Grosso modo, é esta a ideia que tenho dos caçadores. Grosso modo, sou obrigado a lembrar-me deles todos os anos por esta altura. Normalmente, o pontapé de saída é dado pelos interessados, depois vêm o governo, as autarquias, a oposição, claro e mais um exército de gente que faz da matança de espécies que deveriam constituir para todos nós um acervo ecológico inestimável o seu problema existencial e o trajecto da sua feira de vaidades. Tenho alguma dificuldade em perceber tudo isto. Eu sei que não somos filhos únicos. Ainda agora, na loira e civilizada Albion, um fleumático e distinto súbdito de Sua Majestade disse que discutir a caça à raposa "...is not a matter of discussing tne animals rights, but rather the citizens rights". A matá-los, claro. Rather idiot o senhor, mas é lá com eles. Por cá não temos raposas (ou muito poucas...) mas ainda há bem pouco tempo havia quem se entretivesse a procurar e matar linces.
Que me perdoe algum caçador distraído... mas não entendo. Como é que gastar mais de 1000 ou 2000 Euros em equipamento e abater meia dúzia de passarinhos pode dar gozo a alguém. Ainda por cima, dando uma trabalheira ao país em leis, decretos, fiscais, multas e hospitais. Sim, porque há sempre uns quantos que levam uns tiros também.
NOTA: Há um par de pessoas amigas que me vai telefonar a correr e a perguntar porque é que eu fui pescador desportivo de alto-mar. Se eu fosse cínico, responderia com um bem português “não tem nada a ver" (lá está o F. Tomás a dizer-me que é “não tem nada a haver”). É diferente, sim e gera reflexão. Mas entre encher uma rola de chumbos, torcer-lhe o pescoço para ela morrer mais depressa e ostentá-la orgulhosamente à cintura e ter um Wahoo de 30 kg, uma barracuda de 20 ou, suprema glória, um marlin de 200 vai uma grande distância. Para além do enquadramento e de não se estar a ameaçar a existência das espécies. E depois, há um crescente número de pescadores que devolvem os peixes ao mar, depois da luta. O que, obviamente, é impossível fazer a uma rola estraçalhada por chumbos...
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