sexta-feira, setembro 24, 2004

Tu ronronnes...



Sempre achei que quem ressona é parvo. Ou, pelo menos, é uma pessoa sem qualquer espécie de consideração pelo próximo e passa por esta vida pela rama, sem verdadeiramente se acometer a uma plataforma mínima de racionalidade abrangente. Eu explico. Há aquelas pessoas que quando estão a comer um prato de sopa... estão A COMER UM PRATO DE SOPA. Nada mais acontece, nada mais existe, não há coisas boas ou más, não há problemas, não há venturas, HÁ um PRATO DE SOPA. Ou que arrumam o carro por cima das riscas divisórias dos estacionamentos, ocupando dois ou três espaços. Não são capazes de arrumar o carro e pôr o dispositivo cerebral a funcionar no sentido de lhe transmitir que os riscos, em princípio, são para meter o carro lá dentro. Chamemos a estas pessoas os “distraídos". Apenas por comodidade, porque nem sempre o são. Porque também há o distraído compulsivo, ou seja, não é distraído, mas acha que ser distraído vai muito bem com o cenário e, deliberadamente, estaciona o carro por cima das linhas todas. Da mesma forma que quando um distraído vai à casa de banho se entrega EXCLUSIVAMENTE à tarefa que lá o levou. O distraído micta, não medita. Eu acho que estas pessoas são felizes. Basta-lhes fazer umas quantas coisas diferentes durante o dia, para não pensarem em mais nada. Senão, repare-se: Come, conduz, arruma o carro, micta duas ou três vezes por dia, telefona, de vez em quando trabalha, em resumo, são tantas as tarefas que lhe ocupam o espírito que o distraído não tem tempo para pensar nas dívidas, na mulher que de repente começa a chegar todos os dias tarde a casa porque o trânsito estava num inferno, não pensa no Iraque, no Bush, nas vítimas das calamidades naturais, no terrorismo, não pensa em nada. Abandonado e exclusivamente entregue que está às suas nobres missões do quotidiano.

Ora, eu tenho para mim que quem ressona se enquadra na perfeição neste tipo de pessoas. Adormecem e a “entrega" ao sono é de tal forma profunda que ele ressona. Ronca, resfolega e impede um mortal que pensa em todas a coisas que ele não pensa, de dormir. Eu sei que há médicos que dizem que é uma doença, que se deve inclusivamente ter cuidado com estes pacientes, mas eu... não consigo entender a doença, melhor dizendo, não acredito. Eu tive um colega de quarto, na tropa, que causava o mais estridente, sonoro e indescritível conjunto de sons que se possa imaginar. Ao ronco comum, ele acrescentava assobios, tremores de lábios, sons guturais estranhíssimos e, até, movimentos de corpo. Quando isso acontecia, eu chamava: - Rocha (ele chama-se Rocha, apesar de não dormir como uma rocha, ele é mais música de fundo de filme de terror). E o Rocha calava-se... ora digam lá se isto não era de propósito. Se o ronco era tão profundo e dominador, como é que ele me ouvia chamá-lo sem recurso, sequer, ao grito? Ná... esta sintomatologia é própria de quem “come a sopa”, “arruma o carro em três espaços” e dedica a exclusividade da sua actividade cerebral a uma nobre micção.

Por isso eu concordo plenamente com o facto de haver já juizes que acham que ressonar é causa justa para divórcio. Tal como usar óculos para ver ao perto, mas isso fica para outra história, que eu não quero baixar o nível a esta.

Confio que há gente como eu. Que acha que quem ressona TEM CULPA, period. Claro que há excepções... há sempre circunstâncias inesperadas em que uma pessoa, homem ou mulher, está de tal maneira “parvamente” apaixonada que até ao ressonar acha graça. Mas isso é uma questão que remete para outras reflexões, como direi... quem se apaixona é, ou fica, redondamente idiota e, sobre isso, nada há a fazer. E ainda bem, digo eu. Porque se uma pessoa não for idiota aqui e ali acaba por se tornar um idiota militante,irreversível e com carácter permanente, pelo que aconselho vivamente que se seja idiota uma vez por outra, mas sem abusar claro. Para que não se chegue ao ponto de se ver uma mulher por quem se está “idioticamente" apaixonado, ouvi-la ressonar com grande estridência, esboçar um sorriso tão idiota como a paixão e dizer-lhe ao ouvido, de mansinho: - "Mon amour... tu ronronnes" ! E se ela se vira e diz: - "moi, non plus", aí é o descalabro. A hemoglobina desaparece das veias, é tudo hormonas e o cérebro “apaga-se” positivamente. E acabam os dois a ronronar. E eu vou acabar porque tenho já uma das minhas duas idiotas gatas, no sofá, a fazer rrrrrr....rrrrrrrrrrrrrr....rrrrrrrrr... rrrrrrrrr....... diz o meu irmão, que é veterinário, que é sinal de saúde, nos felinos. Não concordo. Cá para mim, isto é gata que “come a sopa", “arruma o carro” e “faz um felino xixi” sem pensar em mais nada. E tem culpa, com certeza.