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O Príncipe Leopoldo
Faz hoje uma semana que, no Teatro S. Luiz, ocorreu um dos mais interessantes debates recentes sobre as relações da "direita" e da "esquerda" com a "cultura. Realizado no âmbito das Noites à Direita – Projecto Liberal, juntou à mesma mesa António Mega Ferreira (representante da esquerda), Pedro Mexia e Rui Ramos (pelo lado da direita), moderados por Manuel Falcão, e pecou apenas por terminar no ponto à volta do qual deveria ter girado a noite toda. Mas lá iremos.
O ponto de partida da conversa foi um fenómeno intrigante: por que razão a maior parte dos "agentes culturais" tem hoje tendência a ser de esquerda? Coube a Pedro Mexia dar o primeiro contributo para mostrar que nem sempre foi assim. Mexia não teve dificuldade em apresentar uma impressionante lista de inovadores artísticos do século XX, feita "à mesa do café" em poucos minutos, que ninguem hesitaria em considerar de "direita". Mas logo teve de alertar para algo que, na maior parte deles, não os recomendava: a sua antipatia pelo demo-liberalismo e correspondente simpatia fascista. Coube então a Rui Ramos dar o segundo contributo para a mesma ideia. Ramos notou que se poderia dizer o mesmo de uma lista equivalente para a esquerda: quase todos antipatizaram com o demo-libralismo e namoraram o comunismo.
A razão por que o intelectual de direita tem sempre de fazer estes avisos, enquanto o de esdquerda não, já nos conduz a explicar, pelo menos em parte, o mistério. Afinal, talvez devesse caber ao de esquerda o maior esforço: o fascismo foi um fenómeno europeu de curta duração (pelo menos de forma generalizada), o comunismo um fenómeno planetário, que ainda sobrevive e durante o qual se praticaram muitas mais barbaridades do que sob o fascismo. É provável que tudo isto tenha que ver com a forma como o fascismo desapareceu: o fascismo foi arrasado (depois de vertido muito sangue) por uma aliança entre o Ocidente de matriz liberal e o comunismo, o que transformou o antifascismo no grande consenso das sociedades democráticas contemporâneas.
A esquerda nunca sentiu, portanto, necessidade de expiar os seus fantasmas da mesma forma que a direita. É por isso que utiliza a autoridade de forma descomplexada. O que é verdade para tudo e, logo, também para o apoio à "criação". No que chegamos ao tal ponto essencial onde terminou o debate: as relações entre o poder político e os agentes culturais. Como o fantasma de Hamlet a apontar o crime, a questão pairou sobre toda a conversa, ms só no final foi falada a sério. Não existe ligação mais antiga do que a do poder político com os artistas ou os intelectuais – Aristóteles e Alexandre, Velásquez e os Habsburgos, Bach e o príncipe Leopoldo. Pela sua própria natureza, a actividade artística raramente dispensa o poder, e o poder adora autoglorificar-se através da arte. Quando Rui Ramos disse que o "Estado" quase nunca tivera, historicamente, responsabilidades face à arte, pois se trata de uma instituição recente, tendo a arte dependido de tantas outras formas de poder, estava a acertar e não estava. Ao perguntar-se: "O que tem Bach que ver com o Estado?", logo pareceu a Mega Ferreira que o tinha apanhado em falso: afinal, sem o príncipe Leopoldo, Bach nunca teria existido. Altura em que Mega Ferreira confessou ter passado a noite inteira com receio do momento em que lhe colocariam a questão do "príncipe". Isto é, a facilidade com que a esquerda adopta na cultura o "princípio do príncipe", quer dizer, a defesa do arbítrio e da discricionariedade do poder político na distribuição de meios para fins artísticos. Mega Ferreira estava, pois, a reconhecer que o mais difícil pelo lado da esquerda é explicar como é que o partido do "sonho" e dos "novos mundos" gosta tanto da autoridade estatal.
Eis, portanto, o ponto essencial. Que encolve um paradoxo: sem sentir necessidade de expiar os seus fantasmas, mantendo, portanto, mais ou menos intacta a boa consciência de quem se afirma guardião da "liberdade" contra o "autoritarismo" da direita, a esquerda não hesita em utilizar a mesma autoridade que (em teoria) tanto odeia para fomentar um ambiente cultural onde a sua mundividência surge como ponto de partida. Como é evidente, só há uma solução para a direita: perceber que não tem o monopólio do horror, não tendo, portanto, por que sentir-se complexada. A direita cultural deveria de uma vez por todas contribuir para desfazer o consenso antifascista que tende sempre a empurrá-la para a tentação negra do fascismo e que, desse modo, limita o pluralismo político e cultural das nossas sociedades. Não para desdramatizar o fascismo, mas para mostrar que ninguém aqui é virgem e que o fascismo não é o único horror. Isto obrigaria a esquerda a um exercício de humildade, que a faria perder a sua arrogância moral. Desta forma, talvez essa direita perceba que, no corrente contexto, o seu é que é o lado da "liberdade", e que a "autoridade" está do outro. Eis, precisamente, o que pode constituir a base de um programa muito apelativo para a tal "ruptura cultural" que Mega Ferreira tanto defendeu ser apanágio da esquerda.