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«Numa manhã, ao despertar de sonhos inquietantes, Gregória Filomena deu por si na cama padecendo de uma imensa coceira. Estava deitada sobre o dorso e, ao levantar um pouco a cabeça, divisou uma pequena casquinha junto ao umbigo, sobre o qual a colcha mansamente escorregava, atenuando o desconforto. Comparada com as do resto do corpo, a casquinha era de dimensões insignificantes mas a coceira que produzia era miseravelmente insuportável.
Que me aconteceu ? — pensou. Não era nenhum sonho. O quarto, um vulgar
quarto humano, apenas bastante acanhado, ali estava, como de costume, entre as quatro paredes que lhe eram familiares...»
Gregória rogou uma praga aos mosquitos, ou pernilongos, como se lembrava de ter ouvido no Brasil, pensando que jamais se exporia aos entardeceres mornos da sacada de sua casa, permitindo que os mosquitos lhe perfurassem a derme e sugassem o sangue, perante o convite sensual ressumado do seu corpo estirado numa rede preguiçosa e espreitando pelas brechas generosas da sua bata de tecido finíssimo. Após o que continuou esfregando os seus dedos na vermelhidão do umbigo, enquanto a coceira se mantinha infrene e quase intolerável.
Cansada, adormeceu, com a fadiga anestesiando o seu corpo e a calidez do ar do fim da tarde massajando de mansinho a sua pele, o corpo abandonado ao torpor do sono, o rosto meio de lado e a sua mão pousada no ventre, escorregada do umbigo, cada vez mais vermelho e até um pouco inchado.
Na manhã seguinte Gregória acordou sobressaltada – a coceira atacando de novo, sem lhe deixar alternativa que não fosse lançar-se para debaixo do duche frio que haveria de despertá-la e, quiçá, amenizar o desconforto da vermelhidão. Gregória sentiu a água deslizando pelo seu corpo ainda adormecido e abandonou-se ao prazer, cerrando os olhos e passando, de leve, a mão pelo umbigo, percebendo que a coceira aliviava. A sua mão continuava deslizando pelo corpo e Gregória quase se esqueceu da coceira. Ao ponto dela se afastar mesmo do umbigo e, acompanhada pela outra mão que decidira juntar-se, deslizarem com suavidade pelas coxas, abraçarem os joelhos com os dedos, subirem de novo até às ancas, chapinharem a água corrente nas nádegas molhadas e enrijecidas pela água fria e iniciarem uma exploração lenta pelo torso, após se terem detido por um momento breve no ventre e Gregória ter percebido que não havia sinal da coceira. No peito, as mãos percorriam agora com lentidão e suavidade a parte superior dos seios, Gregória permitiu-se mesmo a fantasia de acariciar os mamilos entre o polegar e o indicador de uma mão enquanto a outra passava na parte inferior do seio e sentiu-se bem. Chegou mesmo a cerrar os olhos.
Sobressalto! Gregória sentiu outra casquinha. Raspou com a unha e a casquinha saltou, estando agora bem patente na palma da mão e Gregória reparou então que a casquinha tinha um friso de pequenas e horripilantes pernas mexendo freneticamente… o suficiente para Gregória perceber que a casquinha era um repulsivo carrapato. De imediato levou a outra mão ao umbigo e raspou igualmente a casquinha… reconhecendo a dolorosa realidade de se deparar com outro carrapato.
Foi o horror. O pânico. A corrida frenética, nem Gregória sabia para onde. Mas deteve-se frente ao espelho e examinou cada centímetro da sua pele, já depois de ter pisado os dois carrapatos que se esmigalharam no seu próprio sangue, laboriosamente sugado durante a noite.
Gregória voltou ao chuveiro, tremendo. Deixou que a água lhe escorresse pelo corpo abaixo e manteve-se durante largos minutos sob o jacto do duche. Esperava, assim, sentir-se lavada do toque dos carrapatos e expurgada do acto de ter sido sugada toda a noite. Pensou que o sono teria sido seu aliado, não lhe permitindo que acordasse e descobrisse os carrapatos mais cedo… pois isso poderia motivar uma reacção inesperada e arranhar a placidez da noite que se desejava calma, cordata e consensual, pelo que achou ter sido melhor assim. Mesmo assim, levantou o rosto, abriu a boca e deixou que a água lhe inundasse a boca e lhe purificasse os dentes e os lábios, como se os carrapatos lhe tivessem sugado a língua, afastando a sensação de estupro que, entretanto, a dominara.
Gregória olhou para o chão e reparou nos dois carrapatos esmagados no centro das respectivas nódoas do seu próprio sangue. Achou que não havia razão para deixar de se deleitar com os fins de tarde cálidos da sacada de sua casa. Mas jurou a si mesmo nunca mais facilitar. E se alguma vez voltasse a ver uma casquinha daquilo que pensasse ser uma inofensiva picada de um pernilongo, haveria de raspar com firmeza, não fosse, de novo, ser um carrapato ardiloso e dissimulado.
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