A esquerda reciclada às vezes faz obra.
Judas, no pretérito mandato da Câmara da minha paróquia, conseguiu a proeza de atenuar a pirosice da “rotundite”, uma doença que parece propagar-se à velocidade dos fogos de verão, com uma excelente ciclovia de cerca de sete quilómetros e que vai da Casa da Guia ao Guincho. E eu hoje acordei cheio de energia e vontade de fazer coisas. E uma das coisas que eu poderia fazer disse-mo o espelho matinal.
O espelho é aquela invenção imbecil que nos transmite a imagem matinal da barba de 24 horas e nos avisa que
também já há pelos brancos ali pelo queixo e ao nível do maxilar inferior, dos olhos mal dormidos e do cabelo em desalinho e que contribui decisivamente para que as nossas consortes comecem a achar os colegas do serviço muito mais atraentes, esquecendo-se da transição brusca da visão de um homem a sair da cama e outros, ainda que muito mais feios e desinteressantes, acabadinhos de chegar ao escritório, cheios de gravata, camisa engomada e a espalhar “allure for men” pelos corredores. Not fair...
Mas voltando ao Judas. Olhei-me ao espelho e não gostei. Primeiro porque odeio a ideia de vir a ter a barba como o Pacheco Pereira que eu, a preto e prata, só o Casino e não é sempre. Depois porque me senti hummm... perro. Tomei uma decisão importante, agarrei na bicicleta da miúda e tomei aquilo que se veio a tornar numa “cicló”pica decisão. Da minha casa à Casa da Guia é a descer, mas não se nota. Da Guia ao Guincho é a descer... mas não se nota. E lá fui eu, desportivo, radical, fresco, saudável, mente sã em corpo são (liberdade poética. Porque fumo e a mente nem sempre é sã, há bastantes motivos na ciclovia para que passemos à fase de dirty mind, mas isso é outro departamento) e a achar que a vida é bela e que a bicicleta foi a melhor invenção do mundo, a seguir ao controlo remoto da televisão. Houve mesmo alturas em que me entusiasmei com a velocidade e com o cenário (do mar, do mar... nada de dirty minds de juízos apressados) e ia colidindo com
skaters, roller skaters. walkers, bird watchers que achavam que a ciclovia era só para eles. E desculpem-me as expressões inglesas, mas experimentem lá dizê-las em português...
Cheguei ao Guincho, parei, pousei a bicicleta e olhei deleitado para os meus cúmplices, maioritariamente mulheres. Frescas, rosadas e a fazer exercícios respiratórios. Achei que seria de péssimo gosto puxar de um cigarro, pelo que acabei por aderir ao cenário e meti uns litros de ar puro e maresia nos pulmões... e diabos me levem se eles não estranharam. Mas soube bem, não há como negar. Ainda houve uma
old nice lady que me disse que Cascais era
”superb, you people would never know the paradise you actually live in, the sun shines like no other place in the world... in winter, oh dear, oh dear, oh dear!” e eu disse que claro, pois, sim, of course, coisa rápida , na esperança que as considerações sobre o nosso clima se alargassem a interlocutoras menos
oh dear, oh dear, oh dear, mas estavam todas absortas na oxigenação do sangue que lhes corre nas veias que lhes irrigam as pernas que... pois - hoje é dia de mente sã e deixemos de pensar por onde passam as veias.
Regresso a casa. Eram mais sete quilómetros. Tinha sido tão fácil... a questão é que, embora suave, sentia-se claramente que era a subir. Fui pedalando, pedalando, fui mexendo nas mudanças (ainda não percebi porque é que o meu carro tem cinco velocidades e a bicicleta da minha filha tem 23 e foi muito mais barata...) e eu seja ceguinho se a única mudança que me conseguiu fazer chegar não foi aquela em que damos trinta voltas aos pedais para nos deslocarmos meio metro. Mas consegui. Confesso que o cenário já me passou um bocado mais ao lado, a Casa da Guia perdeu o encanto e aquela derradeira subida até casa me pareceu o calvário de Cristo. Mas cheguei. “Atirei” com a bicicleta, meti-me no duche e “despenhei-me “no sofá.
Minimamente recomposto, levantei-me para repor os níveis de cafeína e nicotina. Tenho uma sensação esquisita no corpo, assim uma espécie de impulsão vertical de baixo para cima tipo Arquimedes na banheira, mas estou muito mais compostinho. Já fui ao espelho e já lhe perguntei. Espelho meu, espelho meu, há no mundo alguém mais idiota do que eu? O espelho disse-me: - Não, mas continua a ser idiota e repete o exercício todos os Sábados e Domingos senão qualquer dia és uma mistura adipo-balofo-rugo-qualquer coisa, mesmo antes de ter a barba como o Pacheco Pereira.. Parti o espelho e vim escrever isto.
ET – Mesmo sem ameaças de adipo-rugo-etc., recomendo vivamente este passeio. Estou quase a concordar com a velhinha inglesa. Oh dear, oh dear, oh dear!
Bom fim de semana para todos