A minha relação com a autoridade vai de vento em popa. Ainda há pouco tempo tive de pagar duas UC’s (cada vez percebo mais desta terminologia, ou não fosse eu privilegiado com a amizade de eminentes juristas desta praça…), qualquer coisa como trezentos e uma quantidade de Euros, porque a minha filha levou um murro há uma ano e meio, depois foi citada um ano mais tarde, percorreu esquadras onde lhe davam as mais surrealistas informações, faltou não sei aonde e, a rematar, aparece-me um polícia (simpático, honra lhe seja feita) em casa com uma ordem de detenção. Trezentos e tal Euros depois, de registo criminal limpo e sem saber do paradeiro do esmurrante da filha (a polícia sabe, dizem eles, quem sou eu para os contrariar, não me dizem é porque não o prendem, mas já não faço muitas perguntas) e para culminar um Sábado de febres altas em casa, recebo um telefonema da minha filha (a tal, a do murro…) a dizer que tinham arrombado uma porta do carro e lhe tinham levado a mochila com documentos, multibanco, carta de condução, bilhete de identidade e outras minudências (aliás
dolorosamente enumeradas no seu próprio post). Disse-lhe para ir à polícia… pareceu-me o mais curial. Ela foi e uma senhora simpática vestida de polícia disse que “
deixasse passar mais uns dias, podia ser que os documentos aparecessem”.
Entretanto, verifico que devido ao meu elevado estado febril de sexta feira, também eu tinha deixado a pasta de trabalho no chão do carro. Uma pasta de
genuine leather que me tinha sido oferecida por pessoa que prezo muito e que continha, entre outras ninharias, o meu passaporte, um livrinho de recibos verdes, canetas e um mundo de papeis de trabalho, nomeadamente um estudo para um projecto num país africano que me roubou horas preciosas em que podia estar aqui na Blogos a ler o Barnabé (link ao lado, se linco aqui, eles levam uma chuva de visitas e isso irrita-me).
Hoje fui à PSP de Cascais. De filha, claro, que era a ofendida. À entrada estava um magnífico papagaio africano e um polícia bacano a dar-lhe uma pera rocha. Disse-lhe ao que ia e o agente, simpático e cortês disse para eu esperar um bocadinho que o Chefe já vinha. Esperei e brinquei com o papagaio (para quem não saiba, já uma vez comi um, estava eu na tropa, sem saber, claro, só soube quando disse ao chefe duma longínqua aldeia africana que o frango estava um bocado duro e ele me disse que o frango era papagaio – perceba-se assim, o amor e remorso que tenho agora em relação aos psitacídeos).
Enquanto esperava fui gerando a sensação que estava à espera de vez para cortar o cabelo. Entravam pessoas, saíam pessoas… o chefe nunca mais vinha, eu já com uma íntima relação com o Óscar (assim se chamava o papagaio), as pessoas riam, outras perguntavam se o bilhete de identidade já tinha aparecido e a tudo um simpático cabo, quarentão e gorducho, ia respondendo com a bonomia própria de quem está ali para servir a comunidade, melhor, a participar na sociedade, porque tudo o que era dito, perguntado ou respondido era num registo de loja de bairro e eu juro se não fiquei com a ideia de que toda a gente se conhecia e se não costumavam encontrar-se ali todos os dias. Há até uma senhora grávida, negra e bonita , que entra e pergunta se o marido já ali tinha chegado porque tinha sido preso essa noite em Alcabideche… o polícia disse que não, mas que esperasse um bocadinho, (toda a gente é suposta esperar um bocadinho) talvez estivesse a chegar. O homem chegou… aliás eram dois, calados e algemados, escoltados por um Dirty Harry versão lusa, de camisola azul, gorro da mesma cor e óculos
Ray Ban. Ahhh, mas entretanto chegou o chefe. Lá fiz a queixa. O chefe ia escrevendo e, eu seja ceguinho, foi interrompido mais de 10 vezes pelo telefone. Cada telefonema, entre sorrisos cúmplices, tinha a ver, pareceu-me a mim, com o jogo de ontem do Benfica, da filha que saía mais tarde e quem é que a ia buscar à escola, com o carro que estava a mudar o óleo ou com a comadre que chegava amanhã do Norte. Não posso jurar, mas foi mais ou menos isso. Entre telefonemas, aparecia outro chefe, outro subordinado, mulheres de limpeza (uma até para dizer que o papagaio tinha de sair dali
porque “o cão” já se tinha atirado a ele), enfim, um mundo de gente, de interrupções, de questões que tinham tudo a ver com tudo menos com o facto de eu estar despojado de uma série de documentos para cuja renovação me era exigida a participação à polícia e querer apresentar a necessária queixa.
Nós somos assim. Nem bons, nem maus, somos assim. Não sei se é bom se é mau, somos assim ponto final parágrafo, há quem goste, há quem, como eu, se interrogue sobre as razões profundas de se “
estar” numa esquadra como quem está numa loja de reparação de fechaduras ou numa pastelaria a discutir futebol. Mas isto sou eu que sou esquisito. No meio disto tudo, sempre se vão resolvendo alguns casos. Aliás, as opiniões eram unânimes. Desde o chefe à mulher que estava preocupada com o facto de o cão poder comer o papagaio, todos acham “
que os documentos aparecem”. Mais ou menos no estilo “isto é tudo boa gente”. Ficam só com o dinheiro mas devolvem os documentos. Sentido cívico, afinal.
Neste momento sou o feliz detentor de um papel assinado e devidamente carimbado a provar que apresentei uma queixa na Polícia por furto e que “
para os efeitos tidos por convenientes lavrou-se o presente documento, Auto de Denúncia, que foi integralmente lido e revisto e vai devidamente assinado pelo denunciante e pelo autuante”. Posso, assim, passar á segunda fase, ou seja pedir segundas vias dos documentos. Isto se, entretanto, a mulher da limpeza não estiver carregada de razão e o ladrão, gajo porreiro, devolver os documentos que, segundo a autoridade e cito “
ó meu amigo, isto pode ir ter a Alcabideche, a Sintra, a Carcavelos, mas vai ver que aparecem…”. “
Ai aparecem aparecem, que a mim já me aconteceu , vinha eu das compras, estava a minha sogra muito doente, também fui roubada no Pai do Vento e os documentos apareceram em Murches”, dizia a mulher da limpeza… ou foi o chefe… teria sido a grávida que estava à espera que o marido fosse libertado pelo Dirty Harry?