Somos um povo de graças. Há quem diga que de desgraças. É possível, mas que com graças tropeçamos todos os dias não é menos verdade. Por mim, tenho convivido pacificamente com graças, embora algumas me suscitem a dúvida de não saber a razão da graça. O bairro da Graça, por exemplo, poderá dever-se a alguma graça que por lá viveu ou alguma graça concedida. É um bairro com graça para todos os que achem graça aos bairros de Lisboa e é uma desgraça para quantos se entretêm a encontrar defeitos e malfeitorias nos mesmos bairros. É assim com tudo e tem graça que assim seja. Ocorre-me uma Graça que conheci, também, há muitos anos. Talvez porque fosse pequena, era a Gracinha. Brincámos juntos e eu achava graça a cada graça que a Graça fazia. O pai dela, sem graça, era veterinário e de pouco mais me lembro. Ah! E era gago. o que proporcionava uma "grasnada" inominável sempre que ele chamava pela filha e dizia "gra" dez vezes antes de chegar ao "ça". Senhora da Graça é, ainda, uma famosa (pelo menos para nós) etapa da Volta a Portugal que, de resto, tem cada vez menos graça. Graça é, assim, um termo que grassa livremente pelo léxico nacional sem que daí venha muito mal ao mundo. Mas há uma graça,ou melhor, umas graças que me causam algum desconforto. São as graças a Deus. Não que me mova algo de negativo sobre quem legítima e sinceramente agradeça a Deus pelas graças concedidas. Mas quando o termo se banaliza e, pior, se torma um lugar comum entre as figuras públicas que nos inundam a retina todos os dias em quase todos os programas de televisão,aí sim. É desconfortável, não tem graça e gera em mim aquela sensação idiota de que me fazem passar por idiota a cada momento que passa, sempre que a comunicação com o povo sem graça precisa da graça de uma desgraçada figura pública. É rara a intervenção de político, dirigente comentador ou, por vezes até, apresentador de televisão que não carreie um "graças a Deus". Pode se que seja moda, assim como um vulgar "é assim", "pois" ou o "portanto" de antanho. Mas que Deus não deve ter mãos a medir com tantas graças invocadas é uma questão que todos os que dão graças deveriam ter bem presente e pensar que até Deus não deve achar tanta graça. Isto poderia ainda conduzir-me a recentes reflexões sobre pessoas que morrem, passam inevitavelmente pela Basílica da Estrela e suscitam aquele corropio de gente tocada pelo momento e que, naturalmente, deixa o seu depoimento junto de e para as câmaras. Se os inditosos falecidos são de esquerda... aí a coisa requer alguma agilidade dos entevistados que, frequentemente, têm tiradas geniais para justificar (??...) o facto de pessoas tidas como de esquerda, laicas como convém, acabam em câmara ardente. Ocorre-me uma brilhante tirada de Saramago na vigília de Maria de Lourdes Pintassilgo, o qual, após o panegírico em conformidade com as circunstãncias e com o facto de a falecida ser uma proeminente figura de esquerda (ainda uns dias antes de falecer ela terá dito que estávamos na pior crise política de sempre, desde o 25 de Abril...)se lembrou que estava numa igreja e que a senhora era católica. E a frase brilhante saíu-lhe: Maria de Lurdes era uma... humanista. Sem perceber bem o alcance desta tirada de Saramago fiquei sem perceber se o homem estava a falar a sério ou se estava a pedir desculpa a alguns por a senhora estar na igreja. Coisa sem graça. Uma desgraça, diria mesmo. Que gente sem graça, pretenda ter a graça de ter graça (coisa que nem toda a gente tem). Obrigado José saramago, pela forma como me elucidou sobre o humanismo da senhora. E até uma próxima, se Deus quiser.