sexta-feira, julho 09, 2004

as obras

Tenho para mim que todo o português gosta de ter uma obra de estimação. Já de miúdo reparava que era rara a casa do bairro onde nasci que não dispusesse de obra a preceito. Normalmente, um galinheiro. Ou uma porta nova para o galinheiro. Um muro... também ajudava. Ou porque não uma parede deitada abaixo para se levantar outra semelhante? Naquele tempo (pensava eu...) uma obra era uma realização. A demonstração do nosso saber e das nossas capacidades. Cada qual sempre melhor que a do vizinho. Era o Portugal salazarengo em que todos nós éramos piores que os "estranjeiros" mas, compensatoriamente, bons no que fazíamos. Visse lá um estranjeiro fazer uma marquise como nós...E nós fazíamos galinheiros, muros, degraus, parapeitos e portas de madeira. Claro que a evolução ajustou esta nossa inata vocação para um quadro de obra+corrupção+chicoespertice. O pato bravo instalou-se e como a obra, sozinha, não chegava,ajuntou-se-lhe a obra má. Fazer e ter de desfazer porque estava mal feito, porque se podia ter feito melhor. Lisboa e Porto devem ser as capitais euriopeias das gruas, tapumes e bandeirinhas vermelhas. e dos montes de terra claro. Dos plásticos, valas a céu aberto, tijolos empilhados e camiões poeirentos a espalhar terra e cimento líquido pelas ruas. As pessoas convivem com as obras com a resignação do fado, com o desígnio da sina que nos calhou em sorte e pouco mais haverá a dizer sobre isto. O que me leva a dizer alguma coisa mais sobre isto... é que fui ao Porto de combóio. Um combóio rápido, confortável e moderno. E deu-se a revelação. Afinal as obras não estavam circunscritas às grandes urbes. Os trezentos kilómetros que separam Lisboa do Porto são percorridos numa "obra" ininterrupta. Ele há covas, aterros, valas, gruas, camiões, taludes, sarrafos, plásticos (ai os plásticos...), tudo no maior desleixo e insegurança. O Alfa passa, por vezes, a 200 km/hora a poucos metros da mais elaborada bagunça de que terei memória. Eu já tinha esta experiência de avião... descolar de Lisboa a caminho de uma qualquer cidade europeia é uma experiência ímpar do que somos capazes em matéria de falta de civismo, rigor e respeito pelo nosso país, hoje por hoje um dos mais bonitos que conheço. Mas disso já eu lera uns apontamentos de Pacheco Pereira que, com outro brilho que não o meu, se referira já ao veradeiro horror das pedreiras abandonadas, das matas erráticas e das casas espalhadas pelas florestas sem o mais pequeno pingo de rigor, plano ou cuidado. Mas o comboioi dá-nos uma visão mais próxima e mais palpável do nosso desmazelo. Não é dizer mal nem ser negativo. É desmazelo, mesmo. É desleixo e uma total ausência de vergonha, bem patentes no espectáculo que se nos depara em trezentos kilómetros de viagem. Perceber isto (ou tentar perceber) é complicado ou fácil, dependendo da forma como o fizermos. Mas que é dilacerante reconhecermos as nossas incapacidades, a nossa falta de pudor em transformarmos um cenário privilegiado no mais abjecto cenério de degradação causada pelo homem, é.