sexta-feira, novembro 14, 2008

Carta de fim-de-semana a um amigo


Ponta Sul da Inhaca. Entrada para o "saco"
Clicar para ver bem

[2768]


Meu querido amigo.

Estamos a meio de Novembro. O atum está aí, o “serra” aumenta de tamanho e a barracuda abunda pela tardinha. O vento amainou, como era de esperar e dá perfeitamente para chegares ao baixo Danae, confortavelmente, onde devem estar a aparecer os primeiros wahoos e, ao fundo do “reef”, soberbas garoupas, pargos e corvinas reais. Por volta das nove e meia podes dar uma passagem de corrico em direcção a Sul, passas ao largo do farol e, com sorte, metes a bordo um ou dois dourados. Ou quem sabe mesmo, ali nas imediações do barco afundado, um sail-fish te vá à pena ou à rapala. Quando chegares ao canal de Santa Maria, podes atravessá-lo para dentro (não te esqueças de o fazer no sentido noroeste, por causa daquelas rochas a meio que, se a maré estiver cheia, não se vêem, por causa da espuma. Pára para almoçar do lado de dentro. Ali mesmo á vista do “saco”. Deve estar já cheio daqueles milhares de flamingos-rosa que fizeram do Saco de Santa Maria o seu lar. Entretém-te por aí. Como a pesca por essa hora não dá nada, entretém-te a mergulhar naquela parede de rocha a pique. Aparecem aí muitos ponpanos, peixes-papagaios, lagostas e um ou outro xaréu pequeno. Por volta das quatro, regressa ao lado de dentro da baía. Toma cuidado que a essa hora já estás com o sol de frente e podes encalhar. Uma boa dica é guiares-te pelos flamingos. Depois de passares a ponta sul, mete nos “velhinhos” 275º da bússola e meia hora depois estás no Banco China. Faz alinhamento do morro do farol com as “mamas” por detrás do hotel e a hora já será boa para umas quantas barracudas. “Dá nelas” até às cinco e meia que quando mais tarde, mais elas comem. Regressa depois a casa. Aponta ao sol que vais ter direitinho ao clube naval. Chama pela rádio a avisar da hora aproximada de chegada para teres a carreta na água e não perderes muito tempo.

Deste lado está frio, apesar do sol. As notícias e o dia a dia estão cada vez mais idiotas e as pessoas já só se riem de si próprias. Para dentro. Para fora, parece mal. Fala-se da crise, dos professores, das vigarices nos bancos, do Pinto da Costa que não é julgado, da Fátima que é julgada só um bocadinho, das minas que fecham, das fábricas que despedem e a televisão mostra uns gajos a berrar em regime contínuo. Indignados e insubstituíveis. Há o futebol, eu sei. Mas cheira tão mal que também já mal o vejo. O trânsito anda um bocadinho melhor, morre menos gente, mas estes gajos continuam a conduzir como se tivessem acabado de roubar o carro. As gentes andam deprimidas, zangadas e feias. Doentes, sobretudo doentes e, se não estão, vão ao médico na mesma. Sobretudo os velhos, cansados desta merda. E olha, vou trabalhar. Boa pescaria para ti. Lembrei-me agora que hoje é sexta. Podes, assim, ficar para dormir. Ou no hotel ou ali na machamba, onde o mar é chão e é sempre giro lá dormir por ser uma ilha deserta. Desde que leves rádio, café e cigarros, está bem de ver.

Bom fim-de-semana.

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terça-feira, julho 24, 2007

Mais mundo lá fora



A foto é de péssima qualidade mas é real, do Saco de Santa Maria e vê-se bem o mar aberto do lado de lá da vegetação


[1908]

A praia de Carcavelos deve ter sido escolhida este Verão para destino de muitas, mas muitas dezenas de autocarros de excursão para pessoa idosas e crianças. Como lá passo todos os dias, aflige-me ver aquela mancha humana, porque de uma mancha se trata, que cobre virtualmente todo o areal.

Faz-me pensar no privilegiado que fui durante mais de uma dezena de anos em que quase todos os fins-de-semana atravessava o saco da Inhaca, navegando no percurso sinuoso dos baixios até chegar à ponta de Santa Maria. Esse percurso era praticamente delineado pelos muitos milhares de flamingos rosados no areal e que eu ia jurar que já me conheciam, tal a forma expectante como eles aguardavam a passagem do barco e se precipitavam para a esteira dos motores logo após a minha passagem,certamente para apanharem pequenos peixes tontos pelo turbilhão da espuma.

Para quem não saiba, o "Saco" é uma zona de baixios que separa a ilha da Inhaca da ponta do continente até ao canal de Santa Maria e Ponta Abril, locais de eleição para nadar, fazer ski, apanhar lagostas à mão e, passado o canal para a o mar aberto, apanhar umas barracudas, pompanos, kawa-kauwas, bonitos, wahoos ou queen-fish que gostam de vir comer ao canal. Exactamente a meio do canal há também, umas rochas que proporcionam excelente mergulho e todo o areal é rodeado de densa e luxuriante vegetação. A água é de um azul tão intenso que eu nem sabia que existia antes de conhecer o hemisfério sul e, ao cair da tarde, é cor de prata. Não é poesia, é cor de prata mesmo, provavelmente causada pelo facto de o sol se pôr do lado de terra e não do mar.

Santa Maria faz parte do meu álbum de memórias de coisas muito boas e eu era capaz de escrever tanto sobre ela que precisava de vários posts para tal. E é este álbum que é violentamente sacudido todas as manhãs ao passar em Carcavelos. Será lamechice, será o reconhecimento de que todas as coisas têm o seu tempo próprio, será o desejo de parar o carro e gritar para toda aquela gente que vivemos num lugar pequenino, superpovoado, cinzento, poluído e que há mundo para lá do Bugio. Tanto que depois de o vermos nunca mais nos esquecemos.


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