Sem pré-aviso

[1804]
Eu tinha um contencioso com ela. Durante anos, ela insistiu para que eu fizesse uma cópia da chave para a porta que dá para as traseiras e eu nunca o fiz. Achei sempre que não precisava. Mais do que isso, eu sabia que cada vez que a empregada deixa uma peça de roupa mal presa, a mesma cai e ela, invariavelmente, batia-me a porta, mostrando-me a peça de roupa com ar triunfante, qualquer coisa como “eu não digo que é melhor fazer uma chave?”
Percebia-se, porém, uma certa cumplicidade no enredo das peças de roupa caídas. Porque se eu mandasse fazer a chave e fosse eu buscar alguma peça de roupa caída, certamente que deixaríamos de nos ver por cada vez que me caía uma peça de roupa, tantas eram as vezes que me aparecia com uma meia ou uma toalha.
Também a via à janela da sala, esconsa e silenciosa, fruindo quiçá o prazer de estar sozinha, à janela, a ver quem passava. Quem muitas vezes passava era eu. Ou a entrar ou a sair de casa. Muitas vezes só reparava nela apenas a poucos centímetros. Cruzávamos um “olá” e um sorriso rápidos e todas as primaveras, como agora, ela me falava no tapete de flores de jacarandá que nos sujam os carros todos mas que são lindíssimas.
Ela ontem morreu. Saiu de casa, caminhou uns passos e, diz quem viu e ouviu, que soltou algumas frases sem nexo antes de se sentar no chão. Um passante tocou-me à porta perguntou-me se era minha familiar e eu disse que não, mas que a conhecia. Avisei de imediato o neto, na casa ao lado, que dormia sem saber do drama a desenrolar-se do lado de fora da janela, o rapaz pegou na frágil senhora pelo colo, beijou-a e pediu-me para ligar para o 112, o que fiz de imediato.
À tardinha, as noticias eram animadoras. Que estava melhor. Tinha feito um AVC, mas estava a recuperar. Todavia, à noite, morreu. E eu pensei como hoje se sorri a uma pessoa aconselhando que se faça uma cópia de uma chave, como no dia seguinte se morre. Talvez não haja muito que pensar. Ou melhor, há, mas a gente não quer, porque pensar na morte incomoda. E faz de conta que não pensa.
A minha vizinha da chave das traseiras morreu, depois de andar anos a aconselhar-me a fazer uma cópia. Nunca o fiz. E agora? Como é que vou buscar a roupa que me cai? E quem é que me bate à porta, com uma expressão de amável censura, para me dizer que caiu uma toalha ao chão?
.
Eu tinha um contencioso com ela. Durante anos, ela insistiu para que eu fizesse uma cópia da chave para a porta que dá para as traseiras e eu nunca o fiz. Achei sempre que não precisava. Mais do que isso, eu sabia que cada vez que a empregada deixa uma peça de roupa mal presa, a mesma cai e ela, invariavelmente, batia-me a porta, mostrando-me a peça de roupa com ar triunfante, qualquer coisa como “eu não digo que é melhor fazer uma chave?”
Percebia-se, porém, uma certa cumplicidade no enredo das peças de roupa caídas. Porque se eu mandasse fazer a chave e fosse eu buscar alguma peça de roupa caída, certamente que deixaríamos de nos ver por cada vez que me caía uma peça de roupa, tantas eram as vezes que me aparecia com uma meia ou uma toalha.
Também a via à janela da sala, esconsa e silenciosa, fruindo quiçá o prazer de estar sozinha, à janela, a ver quem passava. Quem muitas vezes passava era eu. Ou a entrar ou a sair de casa. Muitas vezes só reparava nela apenas a poucos centímetros. Cruzávamos um “olá” e um sorriso rápidos e todas as primaveras, como agora, ela me falava no tapete de flores de jacarandá que nos sujam os carros todos mas que são lindíssimas.
Ela ontem morreu. Saiu de casa, caminhou uns passos e, diz quem viu e ouviu, que soltou algumas frases sem nexo antes de se sentar no chão. Um passante tocou-me à porta perguntou-me se era minha familiar e eu disse que não, mas que a conhecia. Avisei de imediato o neto, na casa ao lado, que dormia sem saber do drama a desenrolar-se do lado de fora da janela, o rapaz pegou na frágil senhora pelo colo, beijou-a e pediu-me para ligar para o 112, o que fiz de imediato.
À tardinha, as noticias eram animadoras. Que estava melhor. Tinha feito um AVC, mas estava a recuperar. Todavia, à noite, morreu. E eu pensei como hoje se sorri a uma pessoa aconselhando que se faça uma cópia de uma chave, como no dia seguinte se morre. Talvez não haja muito que pensar. Ou melhor, há, mas a gente não quer, porque pensar na morte incomoda. E faz de conta que não pensa.
A minha vizinha da chave das traseiras morreu, depois de andar anos a aconselhar-me a fazer uma cópia. Nunca o fiz. E agora? Como é que vou buscar a roupa que me cai? E quem é que me bate à porta, com uma expressão de amável censura, para me dizer que caiu uma toalha ao chão?
.
Etiquetas: morrer