Ainda a praxe
O fenómeno da chamada praxe académica não me parece muito
difícil de entender. Nem fácil de resolver.
Li com atenção os excelentes artigos de Pulido Valente e Pacheco
Pereira sobre o assunto e acho que foram tratados com a inteligência esperada.
Pouco haverá a acrescentar ao que eles escreveram.
Por mim, atenho-me a uma opinião mais chã, provavelmente
mais comezinha, mas sobre a qual estou firmemente convicto. A praxe, mau grado
provir de uma longa tradição da academia coimbrã, não é mais que uma
manifestação da nossa particular pequenez, sempre que se trata de exercício do
poder. Poderes pequeninos em gente pequena sempre foram grandes poderes com
grandes repercussões e devidamente aproveitados por instituições do poder político.
Os portugueses sempre se ofuscaram e rejubilaram com o exercício do poder
e da humilhação. Os mais velhos lembram-se dos contínuos das universidades, dos
célebres fiscais de licenças de isqueiro, os condutores da Carris, dos revisores
da CP, dos guarda nocturnos, dos bufos. Dos polícias sinaleiros e, por fim, dos
próprios polícias, quase sempre identificados como inimigos, ao invés do que se
passava noutras latitudes em que a polícia era sempre vista como uma
instituição de utilidade pública e, assim, merecedora de respeito.
Uma sociedade como a nossa, em que um simples fiscal de
licenças de isqueiro se sentia impante de poder, teria forçosamente de gerar
filhos de fiscais, de polícias, revisores da CP e condutores da Carris, passe o
exemplo simplista. E é nessa dinâmica que se formam grupos, associações e
códigos de secretismo (no fundo, assim uma espécie de maçonaria júnior) que se
completam e realizam no exercício do poder, tráfico de influências e práticas de
humilhação nas Universidades. Tudo sob uma marca distintamente déspota e onde o
nepotismo claramente se instalava, também.
Acresce que à tradição mais ou menos provinciana da academia
coimbrã se observou o aparecimento de inúmeras Universidades privadas em várias
cidades, onde à tendência inata da usança do poder se juntou a mesquinha angústia
de os estudantes não quererem ficar atrás dos estudantes de Coimbra. Universidades
que só por si já deixam muito a desejar pelas instalações e campus, tipo
barracões com um terreiro para umas futeboladas, onde os alunos se sentiam despeitados
e naturalmente ainda mais espevitados para estabelecerem as suas próprias
regras.
Pessoalmente, fui praxado e praxei em Coimbra, nos anos
sessenta. E desiludam-se aqueles que pensam que em Coimbra a praxe era mais
séria. Havia já os mesmos desmandos, o mesmo uso indiscriminado do poder, ainda
que a situação política contribuísse para o seu enfraquecimento e desagregação.
Mas, só a título de exemplo, lembro-me de uma abominável prática de se decretar
«incomunicáveis» aqueles que não aceitavam a praxe. É uma falácia dizer-se que
os alunos só aceitam a praxe se quiserem. Talvez agora. No meu tempo, lembro-me
bem de um incomunicável. Que não só não podia falar com NENHUM estudante como
aqueles que fossem apanhados a falar com ele seriam rapados ou levavam, sem
remissão, umas palmatoadas, num recinto próprio para esse cerimonial (havia
mesmo um «carrasco»). Mais ou menos o mesmo estilo de palmatoadas que
exportámos para Angola e Moçambique para punir, por exemplo, alguns camponeses
que não queriam cultivar algodão. Por via de uns cipaios, eles próprios
diligentes herdeiros da grunhisse lusitana.
A praxe não é assim tão difícil de entender.
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Etiquetas: Ai Portugal, brincar com coisas sérias, grunhisse, praxe académica
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