sexta-feira, outubro 19, 2007

Uma pestana no olho



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"...Mas antes de prosseguir, deixe-me fazer-lhe uma advertência. Não se iluda, ilustre concidadão, pensando que o MPLA por solidariedade ou por consideração à sua leal e desinteressada prestação de serviços à revolução o venha a coonestar dos estigmas de que se queixa. Lembre-se das personagens de George Orwell (autor de 1984)..."

"...Reconheço que os seus livros são admirados pela beleza e pela “transcendência espiritual” das estórias que conta. Porém, preferia vê-lo doutra forma. Não como um escriba sentado e submisso que sempre cortejou o príncipe e a sua corte; que sempre se acomodou aos servilismos culturais do MPLA e aos fetichismos do seu regime político; ou que sempre se calou diante das monstruosidades criminais e totalitárias do Estado, e sempre fingiu ignorar os abusos contra o pensamento e a liberdade de expressão..."

"...Com efeito, esperam-se mais explicações, especialmente sobre a tal Comissão em que V. trabalhou. Para as pessoas menos avisadas (ou desinformadas) fica a impressão que os membros dessa Comissão, do princípio ao fim, se pautaram por um espírito de equanimidade. No entanto, não foi essa a percepção nem a experiência que colhi quando V. e outros (entre os quais ministros e altos responsáveis do MPLA) me “interrogaram” na tarde do dia 4 de Junho de 1977. O que ali se passou (recorda-se?) foi tudo menos uma investigação ditada pelo rigor e pela observância de normas jurídicas, e menos ainda pelo respeito a regras de humanidade, e sim uma longa e delirante sessão de tortura psicológica, temperada por gritos de achincalhamento, por ameaças físicas e todo o tipo de bestialidades. No tempo em que durou aquele inferno inquisitorial tive por vezes a sensação de estar na antecâmara da morte..."

Excertos de uma Carta Aberta do historiador angolano Carlos Pacheco dirigida ao escritor angolano Artur Pestana – Pepetela e publicada no Público em 2005.

Esta carta passou-me ao lado, na altura, talvez porque criei uma certa defesa relativamente à emergência dos cantores das acácias rubras, magias africanas, odores e sabores tropicais, sorrisos de meninos e noites do Cruzeiro do Sul, mangas maduras e fogueiras de “sekulos” durante o período louco e volátil do pós 25 de Abril. Sobretudo porque conheço alguns intelectuais, escritores, pintores, escultores, pensadores que brotaram na geração espontânea de intelectuais africanos com raízes em Freixo de Espada à Cinta ou A-dos-Cunhados. E criei a couraça porque convivi de perto com eles, senti-lhes o cheiro e ouvi-lhes o verbo e li-lhes o pensamento. E, frequentemente, fiquei aterrado com o cenário.

A edição do livro de Dalila Mateus e Alves Mateus trouxe agora a terreiro o extermínio sumário de milhares de pessoas em Angola, em 1977. A mim, verdadeiramente o que me pasma é o pasmo de hoje de pessoas que não se pasmaram ontem e que inclusivamente, estremeciam de emoção pela nobreza das causas. No caso de Angola, por exemplo, poucas pessoas se lembrarão já que as vítimas dos massacres nasceram da ou na esfera soviética e eram convictos revolucionários. Mas eram mulatos. Ou brancos. Ou pretos cúmplices. E para muitos brancos ou mulatos, a única escapatória na altura era serem pretos. Nem que fosse só por um bocadinho até se tornarem figuras convenientes ao establishment, para exportação de imagem.


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