A propósito de nada. Ou a propósito de tudo…
A cana vergou-se com violência, sustida pelo «copo» e a
linha foi puxada com violência por duzentos a trezentos metros. Ponho os
motores a zero e tento segurar a cana, mas a pressão é tão forte que torna-se
até difícil tirá-la do copo. Finalmente, consigo pegá-la, encaixo-a no cinto e
preparo-me para a luta. Mas a linha não parava, continuava a ser puxada e a
esvair-se no molinete, entretanto já bem quente com a fricção, o que me fez
recear mais ajuste de embraiagem.
O que seria? Era peixe grande, com certeza, mas, já
conhecedor dos diferentes «toques» para muitos peixes, tive dificuldade em
identificar tamanho esticão. Abri o «ficheiro cerebral», mas nada correspondia a nada. Pela força, poderia ser tubarão, mas o tubarão é mais pachorrento,
puxa com força, abranda, mergulha, vem cá acima, nada para o barco, enfim, tudo
diferente do que se estava a passar. Eis que junto ao barco, muito perto, não
mais que dois ou três metros, surge um grupo de golfinhos, nadando nervosos e
fixando-me com um olhar que eu iria poder jurar que era um olhar crítico e
zangado. Nesta fase, o puxão da linha tinha parado, a cana estava completamente
frouxa e a sensação era de que o peixe, fosse ele qual fosse, se tinha soltado.
Começo a recolher a linha, rodando pausadamente o molinete e reparo que os golfinhos
se mantinham bem perto do barco, nervosos e emergindo frequentemente, mantendo
aquele olhar fixo em mim e eu jurando que aquele era um olhar de clara
reprovação. Continuei a recolher a linha, sem esforço, e comecei a achar
realmente estranho. Os golfinhos não se afastavam do barco, eram uns quatro ou
cinco, corpulentos e magníficos e por vezes, um deles chegava mesmo a uma distância
que me permitiria afagá-lo. Na minha experiência de «deep sea fishing», nunca tal
tinha visto. Um deles, de repente, consegue mesmo colocar diria que um terço do
corpo fora de água, na vertical, olhando-me de frente.
De súbito, percebo que a linha mantinha o peixe (??) preso.
Porque sinto um novo esticão e um pequeno e jovem golfinho, já à beira do
barco, dá um acrobático salto fora de água e eu vejo com nitidez, a rapala
presa numa das barbatanas laterais e tudo estava explicado. O jovem tinha sido
«apanhado» pela rapala e durante algum tempo tentou soltar-se dela. Não
conseguindo, nada para o barco, provavelmente para perceber o que se passava e
quando vê o barco dá um formidável salto e mergulha de novo na profundeza. E é
aqui que fico claramente siderado com o que vejo. Os golfinhos adultos
mergulham, eu sinto uma tremenda confusão na ponta da linha… puxões,
reviravoltas, rapala abaixo, rapala acima, cana tensa, cana frouxa, uma
confusão, enfim, até que sinto a linha lassa de vez, enrolo-a e a rapala me
chega às mãos, livre do golfinho. E senti-me feliz por perceber que o golfinho
estava livre dela. Reflectindo, tornou-se claro para mim que os golfinhos
adultos, um deles provavelmente a mãe, mergulharam e diligentemente soltaram o
filhote. Quando achei que tinha percebido o «filme» eis que o filhote e um
adulto (a mãe?) vêm à superfície e dão outro salto, este claramente de
contentamento e alívio. Viraram-me as costas e desapareceram. Não sem antes eu
achar que aquele último salto era para me manifestarem a alegria pela criança
solta e, quiçá, para me repreenderem e avisarem que para a próxima eu tivesse mais
cuidado e me certificasse se não haveria crianças antes de começar a pescar.
Foi uma cena linda entre mil cenas que vi no mar. Em cada
saída um prazer, em cada prazer um novo episódio, em cada episódio o convencimento
de que o mar tem sempre qualquer coisa de novo para nos oferecer. Como a vida,
afinal. É preciso é reparar nela.
*
*
Etiquetas: coisas boas, mar, vida
0 Comments:
Enviar um comentário
<< Home