domingo, agosto 14, 2011

Contar um conto. - A azeitona

[4383]

Era um daqueles almoços gostosos de pai e filho. O filho era eu e o pai… era o meu pai, um homem pouco dado a restaurantes manhosos. Dizia ser impossível confiarmos na lisura de processos do pessoal dos restaurantes. Saladas mal lavadas, «croquetização» de restos de carnes, higiene pessoal dos cozinheiros e outras malfeitorias, só faltava mesmo dizer que as almôndegas eram amassadas nas axilas da sogra do dono do restaurante.

A actividade profissional obrigava-me a passar por Lisboa de cada vez que me deslocava em trabalho à Europa e essa era uma das vezes. Consegui convencer então o meu pai a irmos comer o conhecido cozido ali à Malveira da Serra, num local onde se paga por cabeça e a estratégia era encherem-nos de acepipes, pagos em separado, para depois comermos menos cozido. O percurso de Cascais à Malveira decorreu sem incidentes e deu mesmo para passar na Charneca e recordar uma casa de campo onde, em miúdo, eu costumava passar os meses de Verão. Uma romagem de saudade e que serviu de pretexto para dilatar o tempo e usufruir aquele pai, já radicado em Portugal por força da «Abrilada» e que, amiúde, me dizia:

- Meu rapaz, não te distraias. Vai pensando em Portugal, por muito que não gostes disto, mas vai pensando. E quando e se tiveres dúvidas pergunta a ti próprio se conheces alguém que tenha ficado a gozar a reforma em Moçambique ou em Angola.

O curto percurso até à Malveira foi feito rapidamente e em poucos minutos eu estava a arrumar o carro, junto ao restaurante. Entrámos, muito calor, muito fumo (ainda se fumava…) e aquela algaraviada em que os portugueses são exímios quando estão a comer, com especial predominância daquela gente que eu ainda não consegui perceber porquê, mas que fala baixo e se ouve na sala toda. Eu tenho um vizinho, por exemplo, cujas traseiras da casa dão para as traseiras da minha e que aos fins-de-semana de Verão tem a insuportável mania de fazer um churrasco com a família, ou amigos, uma coisa em que os portugueses estão cada vez mais especialistas. Até porque grelhar carne ou sardinhas tem segredos e artes só ao alcance dos portugueses, qualquer coisa assim como escolher um bom melão no supermercado, e que só pode ter sido obra divina. Ponha-se um dinamarquês a escolher um melão ou um belga a assar umas fêveras e uns coiratos e espere-se pela pancada. Deus, em matéria de churrasco e escolha de melões é português. No resto, nem por isso, mas temos de Lhe dar o desconto porque também, sabe-se, somos um povo assim para o difícil e um bocado malcriado.

Já na sala, sentámo-nos. De imediato nos cobriram a mesa de «entradas». Tachinhos com dobradinha, croquetinhos, saladinha de polvo, saladinha de ovas e umas fatias de presunto faziam o ramalhete destinado a quebrarmos a fome para quando viesse o cozido, anunciado tipo preço único e coma o que quiser. E foi assim que nos mantivemos a conversar e a debicar as entradas. E lembro-me particularmente de estar conversando e ir rebolando o caroço de uma azeitona, sugando-lhe bem qualquer vestígio de polpa que ainda existisse até ao ponto em que, caroço bem roído, o tirei da boca com os dedos e coloquei naqueles pratinhos das cascas e dos restos. Como gosto de azeitonas, procurei logo outra… e reparo que não havia azeitonas na mesa. Chamado o criado, peço-lhe mais azeitonas e ele diz.

- Peço desculpa, mas hoje não temos azeitonas.
- Como não têm, se acabei agora mesmo de comer uma?
- Comeu uma? Ná. Então é porque é de ontem.

Tive um sobressalto assim do tipo de quando o carro nos derrapa numa curva piso molhado e insisti:

- Mas olhe… veja aqui o caroço, não estou a sonhar, este caroço saiu-me da boca e na boca esteve bastante tempo (isto é dito já numa altura em que começo a adquirir a dura realidade de que não me lembrava do gosto da azeitona, apenas me lembrava do caroço às voltas na boca ).
- Pois, mas não temos. Isso deve ter sido alguém de ontem, que comeu uma azeitona e, sem querer, botou o caroço nalgum piresinho de salada de polvo ou assim, que as saladas não se estragam e a gente «guarda-las» no frigorífico. O amigo sabe como é esta gente, né?

Na confusão de sentimentos que se seguiu, não me recordo bem do que fiz. Entre vomitar, atirar com um tachinho de dobrada ao criado, dizer um palavrão do repertório de um taxista lisboeta ou fazer de conta que não tinha acontecido nada e trautear uma canção ou contar ao meu pai uma anedota de papagaios, tudo desfilou na minha mente e ainda hoje garanto que me falham pormenores de como a história acabou. Qualquer coisa entre o homem dizer que podíamos comer o cozido e não pagar e meter-me no carro vir embora, estrada abaixo, até ao Guincho. Foi isso que fizemos.

Parámos no Mestre Zé e pedi uma água tónica com muito limão e muito gelo (esta do muito gelo, à altura, também era uma medida estranha para os meus hábitos. Os portugueses desconfiavam deste pedido, ainda hoje acham que faz muito mal à garganta a pode parar a digestão, daí que normalmente serviam gelo em forma de minúsculos, minúsculos mesmo, pedaços, já meio derretidos e que, vertida a bebida no copo, se acabavam de derreter de imediato). Durante largos minutos, bochechei e beberriquei a água tónica e a solidariedade desfez-se. O meu pai acabou a rir com vontade e eu fiz o resto do trajecto de regresso a casa com um sorriso amarelo. Vistas bem as coisas, da cor do caroço da azeitona que alguém comeu e eu roí…
.

Etiquetas: ,

10 Comments:

At 9:38 da manhã, Anonymous Lucília Vieira disse...

Soberbo!
:-)

 
At 12:38 da tarde, Anonymous IL disse...

Beijoca de Vilamoura. Se cá estivesses logo via-te no Pontal... É uma sensaçãozinha que eu tenho - eh eh eh. Para quen não é "passista" ias lá muito bem. E essa da azeitona tá bem apanhada. Mas olha que aqui pelo ALLgarve há histórias parecidas :=)

 
At 3:12 da tarde, Blogger Dulce Braga disse...

LINDO! Um conto perfeito, para o dia que se comemora hoje no Brasil!:)*

 
At 9:37 da tarde, Blogger estouparaaquivirada disse...

...E este "conto" aconteceu aqui bem perto de Cascais????? Em plena civilização :))))
xx

 
At 1:19 da manhã, Blogger Maria do Rosário disse...

Muito bom!! Rs.,

A azeitona que me perdoe, mas a cumplicidade pai e filho falou mais alto.

Beijinho,
Rosário

 
At 9:31 da manhã, Blogger Nelson Reprezas disse...

Lucília Vieira

Tal como a notícia sobre a morte de Mark Twain pecava por exagerada, acho que este soberbo sofre do mesmo pecado, mas obrigado pela gentileza :))

 
At 9:33 da manhã, Blogger Nelson Reprezas disse...

Dulce Braga

Foi mera coincidência, Dulce, acredita. Mas... até que seja lindo. Mas eu a roer um caroço de uma azeitona comida por outro cidadão não te merece a mínima comiseração?? :)))
:)*

 
At 9:34 da manhã, Blogger Nelson Reprezas disse...

papoila

Aqui, papoila. E se pensares um bocadinho até adivinhas qual é o restaurante :))

 
At 9:36 da manhã, Blogger Nelson Reprezas disse...

IL

Desculpa, estavas a ficar para trás. É o que dá seres «pequenina» :)))))
Ainda aí está o velhote caboverdeano do estacionamento? :)))

 
At 9:37 da manhã, Blogger Nelson Reprezas disse...

Maria do Rosário

Até provável que sim, Rosário, mas não foi propositado

 

Enviar um comentário

<< Home