Mudança de paradigma
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Saí do gabinete e cruzei-me com ela no corredor. Sozinha, avoada (*), parecendo até temerosa da solidão do corredor, pisava as tábuas nuas do soalho sem fazer qualquer ruído, como se de um milagre se tratasse ou, mais prosaicamente, estivesse descalça.
Olhou para mim com a mesma expressão que um náufrago enxerga um sarrafo no mar alteroso e estende-me a mão, dizendo:
- Bom dia, sou a nova médica da empresa.
- Médica? Repeti eu, em sussurro, que desconhecia em absoluto que o médico anterior teria sido substituído.
- Sim, mas… não vejo ninguém. Talvez as pessoas pensem que as visitas continuem a ser no período da tarde. Mas não. Eu pedi para avisar de que passariam para o período da manhã.
- Pois, mas certamente que sim. Muito gosto em conhecê-la. Balbuciei eu, à medida que ela continua a sacudir a minha mão como se estivéssemos a ser fotografados por um batalhão de fotógrafos numa cimeira europeia.
- Mas, não há doentes?
- Não, doutora. Está toda a gente de férias. E os que ainda não estão, estão a fazer as malas. E depois… há um idiota ou outro, como eu passando agora neste corredor, que nem estou de férias nem estou fazendo as malas. Vendo bem as coisas… a doutora não acha que isto que lhe estou a dizer é um motivo forte para eu ir ao médico?
- Ih, ih! Este ih, ih é literal. A maior parte das pessoas que conheço ri ah, ah ou, ainda, eh, eh. Mas a nossa nova médica ri ih, ih!
- Ou então, continuei eu, isto é como tudo. Os portugueses só adoecem aos dias úteis. Aos feriados, fins-de-semana compridos, sábados, domingos e dias santos de guarda são saudáveis e as urgências dos hospitais e centros médicos são, até, uma sensaboria. Coisa chata, mesmo. Ah! Também adoecem, em jornadas de luta, como há dias os polícias adoeceram todos quando…
- Ah! Um escândalo não foi?
Nesta parte do diálogo estive quase, mas quase, para lhe perguntar quem é que assinava baixas e atestados médicos mas lembrei-me que neste país estranhíssimo podia muito bem ser que não fosse. Assim calei-me, disse «muito gosto em conhecê-la, doutora», e fui à vida. Ainda a ouvi dizer que, «bem, se calhar ia embora porque não estava ninguém doente». De novo tive um impulso de reatar o diálogo e dizer-lhe: olhe que não doutora, olhe que não…nesta firma temos imensos doentes. Não perde pela demora!
(*) Mente distraída, desatento. Enciclopédia Luso-Brasileira. Eu sabia, eu sabia que já tinha ouvido este avoada, algures… fui ver e lá estava. Mais tarde percebi que só o Google tem 79.300 resultados para avoada. Porque carga de água teria eu que consultar a enciclopédia? Um avoado, é o que sou!
Saí do gabinete e cruzei-me com ela no corredor. Sozinha, avoada (*), parecendo até temerosa da solidão do corredor, pisava as tábuas nuas do soalho sem fazer qualquer ruído, como se de um milagre se tratasse ou, mais prosaicamente, estivesse descalça.
Olhou para mim com a mesma expressão que um náufrago enxerga um sarrafo no mar alteroso e estende-me a mão, dizendo:
- Bom dia, sou a nova médica da empresa.
- Médica? Repeti eu, em sussurro, que desconhecia em absoluto que o médico anterior teria sido substituído.
- Sim, mas… não vejo ninguém. Talvez as pessoas pensem que as visitas continuem a ser no período da tarde. Mas não. Eu pedi para avisar de que passariam para o período da manhã.
- Pois, mas certamente que sim. Muito gosto em conhecê-la. Balbuciei eu, à medida que ela continua a sacudir a minha mão como se estivéssemos a ser fotografados por um batalhão de fotógrafos numa cimeira europeia.
- Mas, não há doentes?
- Não, doutora. Está toda a gente de férias. E os que ainda não estão, estão a fazer as malas. E depois… há um idiota ou outro, como eu passando agora neste corredor, que nem estou de férias nem estou fazendo as malas. Vendo bem as coisas… a doutora não acha que isto que lhe estou a dizer é um motivo forte para eu ir ao médico?
- Ih, ih! Este ih, ih é literal. A maior parte das pessoas que conheço ri ah, ah ou, ainda, eh, eh. Mas a nossa nova médica ri ih, ih!
- Ou então, continuei eu, isto é como tudo. Os portugueses só adoecem aos dias úteis. Aos feriados, fins-de-semana compridos, sábados, domingos e dias santos de guarda são saudáveis e as urgências dos hospitais e centros médicos são, até, uma sensaboria. Coisa chata, mesmo. Ah! Também adoecem, em jornadas de luta, como há dias os polícias adoeceram todos quando…
- Ah! Um escândalo não foi?
Nesta parte do diálogo estive quase, mas quase, para lhe perguntar quem é que assinava baixas e atestados médicos mas lembrei-me que neste país estranhíssimo podia muito bem ser que não fosse. Assim calei-me, disse «muito gosto em conhecê-la, doutora», e fui à vida. Ainda a ouvi dizer que, «bem, se calhar ia embora porque não estava ninguém doente». De novo tive um impulso de reatar o diálogo e dizer-lhe: olhe que não doutora, olhe que não…nesta firma temos imensos doentes. Não perde pela demora!
(*) Mente distraída, desatento. Enciclopédia Luso-Brasileira. Eu sabia, eu sabia que já tinha ouvido este avoada, algures… fui ver e lá estava. Mais tarde percebi que só o Google tem 79.300 resultados para avoada. Porque carga de água teria eu que consultar a enciclopédia? Um avoado, é o que sou!
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Etiquetas: mudar o paradigma, nova médica
4 Comments:
Este post é uma delícia. Eu até consigo imaginar o cenário do corredor em causa. Adorei!
Ficámos sem perceber a parte importante da questão. A senhora é uma boa médica, uma médica boa ou não deu para perceber?
Vítor Correia de Azevedo
Ficamos à espera que tenha ainda um crédito para uma consultazinha... :)
Anónimo
A senhora será uma boa médica, certamente. No mais... distraí-me a dar-lhe as indicações e não reparei em mais nada...
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