O desafio da Madalena
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A minha rua era estreita, curva e bordejada por vivendas modestas que os funcionários públicos podiam adquirir em rendas vantajosas e destinadas a mais tarde serem vendidas a preços de mercado, inflacionado pelo facto de, entretanto, o bairro da Encarnação (assim se chama ele) ter ficado praticamente dentro da cidade.
A minha rua proporciou-me épicos desafios de futebol, fossem de baliza a baliza fossem com equipas completas de cinco de cada lado, no sistema de “muda aos cinco e acaba aos dez. Sob o alpendre de cada uma das casas havia pequenos terraços de cimento que serviam à medida exacta para jogar às caricas e todas as casas tinham aldrabas e batentes (ainda não havia campaínhas) com que eu e os meus amigos nos entretínhamos na iniciação da delinquência juvenil, batendo-lhes e pondo-nos a recato, de onde pudéssemos ver a cara irada dos que vinham abrir a porta. Às vezes havia guerra. A rua 2 contra a rua 4, rua 4 contra a rua 6 e faziam-se mesmo declarações de guerra, aliados e armistícios, dependendo da capacidade negocial de cada um de nós. As batalhas eram à pedrada entre as sebes dos jardins e tenho bem presente o dia em que me parecendo que tínhamos ganho a refrega, me alcei ao pilar de um muro e acabei no hospital com a cabeça rachada e a minha pobre mãe a chorar.
Na minha rua não havia carros, a rua era toda para nós. Lembro-me bem quando o meu pai comprou um Fiat, seu primeiro carro e primeiro carro a, reluzente, parar à porta da minha casa. Muito pouco tempo depois um vizinho comprou um carro também. Éramos quase todos rapazes. Era eu, o Carlos e o Marito (filhos da D.Libânia), o José João, o Jorge Lomelino (um miúdo a que todos nos referíamos como o filho da judia), o Quim, o Eduardo Jorge e um miúdo gordo de que nunca soube o nome e que todos nós nos entretínhamos a correr atrás dele por ser gordo e “mariquinhas”...
Quase não havia raparigas, na rua. Eram quatro, todas irmãs, a Belinha, a Zé, a São e a... pois... já lá não chego, era a mais miúda de todas. A Belinha era lindíssima e povoava os meus cinco, seis, sete anitos de visões e sensações estranhas que eu não percebia mas que acolhia com deleite no meu íntimo. À Belinha devo a descoberta (mal sabe ela...) dos segredos mágicos da infância. Que, mais tarde, se materializariam, gradualmente, na adolescência .
Depois havia a D. Libânia (acho que só em Portugal é que pode existir uma mulher com este nome), havia a D. Flávia, a “mãe” do Eduardo Jorge (mãe do Eduardo Jorge porque nunca lhe soube o nome), a “judia” e a mulher do polícia, sendo que já nesta altura a mulher metia medo pelo simples facto de ser casada com um polícia. O “maluco da Encarnação" fazia parte, também, deste cenário da Rua 2 . Um pobre débil mental que vi durante anos com um macacão azul e um lenço vermelho à cabeça. Sempre que era avistado ao fim da alameda, todos nos metíamos em casa e esperávamos que ele desaparecesse, transidos de terror. Lembro-me ainda que ao fim da alameda havia o que chamávamos “o alpendre” que era onde se apanhava o 8 para a Praça do Chile e onde se comprava os jornais, o Mundo de Aventuras às Quintas e o Cavaleiro Andante aos Sábados.
E, traços largos, esta era a minha rua. Depois dela, muitas ruas conheci. Mas, tal como se costuma dizer, não há amor como o primeiro. Esta ainda é a que consigo descrever com a minúcia de quem poderia lá ter andado a jogar futebol ou ao “mata” ainda ontem. Apesar de ter deixado de lá morar aos nove anos.
E para que não te fiques a rir, aqui deixo dois apontamentos ilustres. Uma rua e uma coluna. Para que não penses que só tu é que tens ruas com o teu nome.
Desafio cumprido. Pobrezinho, eu sei. Mas deu-me gozo lembrar-me da rua 2!
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3 Comments:
Obrigada Nelson! Não sei se o sitemeter te avisou mas eu já cá estive a ler a tua rua duas vezes. Hoje li pela terceira vez, com o mesmo encanto das outras duas, e com mais vagar para poder conversar contigo sobre a tua Rua e sobre ti: ganda malandro. Com que então delinquente das campainhas? Eu não vivi em Portugal a minha infância mas em determinadas condições económicas, com a s mesmas condições, as infências são tão iguais no encanto e na ilusão. Tu gsotaste de recorda e eu gostei muito de ler a tua rua. Beijinhos e mais uma vez obrigada!
Já me esquecia: tu tens uma rua e uma coluna de fazer ineveja a uma madalena qualquer. É que além do nome da rua eu sou um bolo. E um bairro!!!!lol Beijinhos
madalenaNo que diz respeito aos bolos levas-me vantagem. Mas tenho a sorte de não estar sujeito a que me dêem uma dentada
:))))))
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