Amoras de silva
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Hoje reparei nelas por acaso. Estão aí de novo, como acontece todos os anos, amuando com a indiferença dos passantes e oferecendo-se, provocantes a quem as quiser desfrutar.
Hoje reparei nelas e parei a bicicleta para apanhar uma ou duas. E lembrei-me como há cerca de dez anos atrás as amoras de silva foram parte indissociável de um programa “portugalizante” de uma filha de 10 anos que, por exemplo, já conhecia Hong Kong, a cidade do Cabo, Paris ou Marracuene mas cujo conhecimento de Portugal se resumia aos verões de Vilamoura, ao Hotel Tivoli de Lisboa e umas idas fugazes ao bairro da Encarnação. Por isso achei que lhe devia mostrar o pão de ló de Alfeizerão, as areias da Areia Branca, alperces maduros nas árvores, o sável frito do Tejo, os pastéis de Belém, os genuínos, o museu dos Coches, a Batalha, a Universidade de Coimbra, Almeida, a Serra da Estrela (o zimbro, as paiolas e o queijo, a Santa e o Poio do Judeu), as terras de Bouro, Foz Côa, a terra de Viriato, o Castelo de Guimarães, os vinhedos do Douro, aldeia de Monsanto, a maçã reineta de Armamar e outros “artigos” genuinamente lusos que seria fastidioso continuar a enumerar. E a verdade é que as amoras ganharam um lugar de proa na sensibilidade da adolescente. Habituada aos sabores das goiabas, mangas, papaias, maçucos, pitangas, maboques (África terra bruta, que ate à papaia lhe chamam de fruta…), a filha de 10 anos rejubilou com os sabores novos das amoras, das cerejas do Fundão (a cereja sul-africana é blague em estado puro), abrunhos e correlativos da zona temperada do norte. Mas a sua preferência pelas amoras era clara. Não só pelo gosto mas também pelo facto de serem apanhadas “no mato” à beira de estradas secundárias o que, certamente, lhe traria reminiscências dos “matos” anteriores. E foi assim que em muitos passeios, fiz muitas paragens para apanhar e comer amoras, os dois sentados na berma da estrada, pretas, doces e deliciosamente cobertas do pó da estrada que fiz questão que ela comesse, duvidando da sanidade mental de um pai que até aí lhe tinha incutido um estrito sentido de higiene e que agora ali estava a dizer que podia comer amoras cobertas de pó…
Era o tempo da filha de 10 anos e de mais uma mudança de vida para novas caras, novas gentes, novos climas e novas frutas. Como as amoras. Um tempo em que as minhas preocupações passavam por matérias tão simples como as de achar que uma filha provinda de um vasto cosmos “precisava” de se integrar num meio que, mau grado a vivência anterior, era o que constava no seu passaporte.
Mas isto foi há dez anos. Ela hoje tem vinte e come amoras com a naturalidade de quem já conhece o país de norte a sul e conhece os segredos das pataniscas de bacalhau ou que Golfeiras é aquela terra antes de Mirandela onde, de resto, se fazem alheiras muito boas. Por isso já não passeia com o pai. E ainda bem. Porque continua a passear na mesma, tem uma colecção admirável de amigos e colegas, não pára quieta, herdou o estilo palavroso do pai e a graça da mãe o que, convenhamos, é uma simbiose feliz e é uma portuguesa encartada e com as quotas em dia. Além de que se eu hoje dissesse à minha filha que hoje tem vinte anos para irmos dar uma volta à Serra da Estrela, por exemplo, e pelo caminho comíamos umas amoras de silva, ela era capaz de achar que eu deveria ir com urgência à externa de psiquiatria. E daí… um dia experimento e pode ser que com a aliciante de subir o Cávado num bote a motor eu consiga convencê-la.
O post ficou longo e eu já não sei o que ia dizer ao princípio, quando parei para comer as duas amoras. Mas que parei, parei. E comi umas quantas. Depois foi a parte amaricada de telefonar à miúda a dizer : - “Olha, parei a bicicleta e estive a comer amoras à beira da estrada…”
12 Comments:
Mas que bonito post! ... entre o nostálgico e o poético ...
Gostei, gostei muito!
Beijinhos, sem cor de amoras de silva ... que aqui por BXL não as há nas bermas da estrada,
Sinapse
:))
Não sei se o post está amaricado, mas eu gostei muito. Mesmo muito. Também gosto de amoras e lembro-me de uma brincadeira sem graça nenhuma mas cheia de inocência em que se aproveitava a rima das amoras:
- Gostas de amoras?
- Sim!
- Então vou dizer ao teu pai que já namoras!!!!!
(Eu avisei que não tinha piada!)
Beijinhos para ti e para a filha de dez anos que já tem vinte...
Filha com pai de sorte: é assim mesmo, pelos sabores se prova um país. Eu adoro, durante as minhas caminhadas na Irlanda, deitar mão às amoras. Beijo aos dois, IO.
Sinapse
Sempre uma palavrinha simpática e doce :)))
Obrigado
Beijinhos ainda com sono
Madalena
Long time no see... Terás voltado de férias para a a comemoração dos 33? :))
Já tinha saudades de um comentáriozito teu.
Quanto à rima popular lembro-me bem dela e da malícia que, nesses, tempos, o termo "namorar" envolvia. Era assim uma espécie de pecado :)))
Beijinhos e mais uma vez parabéns para ti e para o Jorge.
IO
Já o disse aqui... não conheço a irlanda... um dia vou lá comer amoras!
:))
beijo
o post de um pai extremoso com sabor a amoras é sempre bem-vindo
t-shelf
Diz o roto ao nu...
:))
Quando é que voltarei a ver esta mãe babada?
beijinhos
:)
Sofia
Obrigado pela simpatia e seja benvinda. Sempre.
Beijinho e obrigado
Um pouco tardio este meu post, mas só agora tive oportunidade de ler.
Não só apreciei a forma como foi escrito, como o conhecimento dos produtos por regiões.
Há dias, numa das idas á aldeia, tive a sorte de ter saboreado as amoras silvestres e assim lembrado velhos tempos.
Mal lavadas e, concerteza com algum pó, não me foram fatais, pois já passaram vários dias e a saúde continua.
Anonymous das 2:16 AM
Mais dois posts não chegariam para mencionar os produtos típicos das várias regiões.
Obrigado pela simpatia.
Escrevi un comentario que misteriosamente desapareceu. O seu saudoso post fezme recordar as minhas caminhadas de mais de quince quilometros do Bizarril ao ao Vilar Torpin durante dois anos para completar a escola primaria. Eu sonhava com a chegada da primavera para saciar-me de Amoras de silva que creiam a lado dos caminhos polvorosos.Que Deus lhes de muita saude a voce e a sua filhinha e a oportunidade de comer muitas amoras de silva.
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