"Só um bocadinho"

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Contrastando com a expressão brutal de alguns dos nossos sentimentos, existe hoje uma forma de ser "um bocadinho" de qualquer coisa. Um bocadinho assim coisa simples, que não magoe nem fira nem ninguém, sobretudo que não nos exponha demasiado quanto á verdadeira natureza das nossas paixões em relação a um determinado assunto, situação, coisa, pessoa ou fenómeno político. Nós somos brutais e sinceros na nossa brutalidade no trânsito por exemplo, as situações em que manifestamos até a nossa alarvidade são frequentes, somos brutais no futebol, o árbitro é quase sempre uma besta e a mãezinha dele viaja quase sempre num comboio de senhoras mal comportadas que em determinado momento da sua vida engravidou, somos brutais a falar para o subordinado no local de trabalho, se a hierarquia nos concedeu a graça de sermos chefes (coisa para que muitos de nós não estamos preparados, claro), somos brutais, enfim, para o empregado de mesa do restaurante de luxo porque o bife está passado demais, sobretudo se pagamos com Gold e estamos acompanhados por alguém que queiramos impressionar.

É claro que esta brutalidade é, por vezes, manifestada por atitudes idiotas, mesmo pueris, mas que servem para “mostrarmos” que somos muito directos, muito francos a reagir contra as circunstâncias da vida que nos ferem os sentidos “que eu sou muito franco, corto a direito, muito honesto e não pactuo com a mentira”. Este é normalmente o mote.

Curiosamente há aquilo que eu chamaria do “ser um bocadinho qualquer coisa”. Nós ficamos “um bocadinho chateados” se a criancinha da pessoa que queremos impressionar nos molha as calças porque resolveu entornar a bica, traímos o(a) parceiro (a) só um bocadinho se a coisa não tem significado, há, enfim, um sem número de situações “só um bocadinho” com as quais vamos tendo de conviver. Incluindo a blogoesfera onde, por vezes, se detesta alguma coisa ou alguém mas convém fazê-lo "só um bocadinho", com tacto e polidez, achamos que aquele post assim assim está uma autêntica estucha mas só o dizemos de forma “um bocadinho”, quanto mais não seja porque somos educados ou, mais grave, temos interesse em não ferir o autor da estucha. E há finalmente uma situação que se vai tornando verdadeiramente hilariante. É a forma como somos “um bocadinho de esquerda”. Sim, porque todos temos de ser um bocadinho de esquerda. Primeiro porque vai muito bem com a gravata e depois para não sermos tomados por nazis, skin-heads ou pró americanos (que toda a gente sabe que são estúpidos, incultos e acordam todas a as manhãs a pensar quantos países vão invadir nesse dia) e isso não dá muito jeito à nossa reputação de seres impolutos, cultos, politicamente correctos e profundamente preocupados com a realidade social de uns quantos países africanos dos quais, muitas vezes, a única coisa que conhecemos com algum rigor é que ficam algures ali "em passando para lá da Trafaria".

Isto vem a propósito do excelente filme "O Tigre e a Neve”. O modelo para mim está um bocadinho esgotado, teve o arquétipo em “A vida é bela”, mas tudo bem, Roberto Benigni é um excelente actor e uma das (poucas) criaturas que me fazem ir ao cinema não americano. Mas foi evidente que Benigni, naquele contacto com a patrulha norte americana, tratou a coisa com pinças, conteve-se diria eu, foi só um bocadinho crítico para o que não deve ser estranho o facto de o filme ser exibido também nos Estados Unidos. E não convinha chatear muito o pessoal.

Alguém mais atento poderá atirar-me à cara já com o M. Moore que não é um bocadinho de nada e não se preocupou em chatear fosse quem fosse com um par de filmes. Mas é que estou a falar de filmes, bons filmes e não de trash político que é o que Moore sabe fazer.

E agora vou trabalhar. Só um bocadinho, mas vou! Ah! E "O Tigre e a Neve" é um excelente filme, tem que se dizer.