Histórias de Moçambique (4) - A Chuva de Peixe
[451] - Moçambique é conhecido por ser um país de excessivos fenómenos naturais. Por exemplo. Uma trovoada, sobretudo no último terço territorial a sul, não é uma trovoada tal como normalmente a imaginamos. É uma descarga brutal de energia eléctrica, quer através de enormes e ribombantes raios, quer através de longos períodos de continuadas descargas seguidas que podem iluminar a noite durante vários minutos sem interrupção. As chuvas podem ser torrenciais e inundarem a baixa de Maputo em pouco mais de uma hora, o granizo pode ter a dimensão de tangerinas (não me contaram, eu vi e o meu carro sentiu...) e um dia de sol e mar chão no período da manhã pode transformar-se numa tarde de ventos de 100 km horários vindos do Sul, provocando vagas de três ou quatro metros. Tudo sem avisar.
É uma terra bruta, violenta e não são raros os fenómenos naturais de consequências frequentemente trágicas para as populações. De tal forma que o governo tinha, pelo menos até há poucos anos, um departamento especial de combate e prevenção às calamidades naturais.
Quando lá vivi, habituei-me assim a este tipo de ocorrências. Mas um dia saí de casa, meti-me no carro e, a caminho do trabalho, vi as ruas pejadas de gente, sobretudo mulheres e crianças que, com sacos e capulanas, apanhavam qualquer coisa das bermas. Intrigado, parei o carro e vi... que era peixe. Sim, peixe. Peixe miúdo, com não mais que um centímetro de comprimento e que virtualmente cobria a rua onde eu passava. As gentes iam apanhando o peixe no meio da maior confusão e risadas de contentamento. Pensando que algum camião teria perdido a sua carga e que os populares ali estavam a recolhê-la, segui caminho. Mas reparei que a "inundação de peixe" continuava ao longo de toda a Julius Nyerere. Eram milhares (milhões ?) de peixes minúsculos ao longo das bermas e fiquei verdadeiramente surpreendido sobre o que se estaria a passar. Decidi então perguntar a uma mulher o que tinha acontecido... "choveu peixe esta noite", respondeu-me ela.
Já vi muitas coisas na vida e sabia que um árbitro português até já tinha visto um porco a andar de bicicleta. Mas... chover peixe? Insisti na pergunta e a resposta veio de mais pessoas. "Choveu peixe". Pronto, pensei, ficamos assim. Tinha chovido peixe e eu segui para o escritorio a pensar que tipo de herança teria aquele povo herdado de nós para me dizerem, com a maior naturalidade que tinha "chovido peixe".
Poucas horas depois, a rádio transmitia a notícia de que tinha havido durante a noite uma tromba de água a cerca de sessenta milhas da costa (cem quilómetros), em resultado da qual, toneladas de peixe miúdo teria sido elevado pelo remoinho ascendente a muitas centenas de metros e arrastado pelo vento para as ruas de Maputo.
A maioria daquela gente que eu vira a apanhar o peixe não sabia o que seria uma tromba de água. Tinha "chovido peixe" em Maputo e isso era quanto bastava saber. Havia apenas que levar o peixe para casa...
14 Comments:
Mas a chuva mais linda foi na noite de 25 de Junho, emplena estação seca e fria - e logo um popular nos disse que era "para limpar o colonialismo" (está na hora de cair outra assim, para limpar o novo-riquismo).
Oh, pá, espumante, se souberes de alguma que faça pescar caranguejo, diz!! - uma a salivar por um bom caril.
E tudo acaba não é? :)
Eu morei nessa avenida, mas na altura chamava-se António Enes. A tua descrição da trovoada e da chuva, bem como do granizo (lembro-me tão bem do granizo) é exactamente como me lembro. Quando tento contar assim, chamam-me exagerado.
Quanto à chuva de peixes, parece que não é original. Aconteceu também aqui na Europa na alta idade média. Pelo menos existem alguns registos.
Ah! E a propósito da trovoada. A carga de electricidade era de tal maneira forte que a minha mãe, e depois eu, conseguíamos perceber com uma antecedência de um par de horas a chegada das trovoadas mais fortes, tal era as dores de cabeça com que ficávamos.
Belas histórias que vais contando aqui! Mas choveu mesmo peixe, estás a ver? Convém não duvidarmos do que ouvimos, por estranho que pareça!
Beijinho para ti.
Uma bela maneira de começar a semana. Obrigada Espumante.
IO
A chuva para limpeza do novoriquismo é capaz de demorar ainda um bocadinho. Não basta que o espírito do "Live8Live", por exemplo, atinja os espíritos empedernidos dos ricos, que esses são ricos há muito tempo. É preciso que os novos ricos gerados pelos novos países entendam que a eles lhes compete talvez a maior parte da responsabilidade no manejo e aplicação dos fundos de ajuda recebidos. Sabemos que, infelizmente, não tem sido o caso. Era bom que os promotores de eventos como o de anteontem tivessem disso consciência e englobassem os dirigentes africanos no saco dos que têm a responsabibilidade de "Make pooverty history". Assim, tal como s tem feito, o esforço é redutor. Os ricos podem duplicar e até triplicar as medidas de erradicação da pobreza mas se isso não for acompanhado por uma atitude séria por parte dos que gerem as ajudas, será mais u exemplo do politicamente correcto que não tira a fome a quem a tem. E isso talvez leve ainda algum tempo...
Beijinho para ti
daniel malafaia
Não, não acaba. Há-de chover mais peixe :))
Obg pela visita
ideafix
Eu também já tive alguma dificuldade em que me acreditassem, sobretudo sobre o tamanho do granizo :)) Quanto à chuva de peixes também já ouvi que é um fenómeno mais ou menos recorrente... só que nunca tinha visto.
Se isso te serve de alguma consolação a Julius Nyerere continua bonita e bem cuidada, cheia de acácias na faixa central e com mais uns quantos edifícios. Um abraço
Madalena
Eu sou um bocadinho céptico... mas depois de algumas coisas que já vi na vida, já vou acreditando em cenas por muito inverosímeis que sejam.
Beijinhio para ti
Pitucha
Fico contente por teres gostado.
beijinho e boa semana.
Gostei tanto da história que me lembrei de Camões que, no Canto V dos "Lusíadas", conta "...longamente as perigosas cousas do mar, que os homens não entendem..." e estive a relê-lo.
Obrigada Espumante por estes momentos de leitura. Beijinhos
Laura Lara
Obrigado e um beijinho para ti
Também morei na então António Enes. Vi do alto da minha varanda do 12º andar o meu carro a ser "apedrejado" com granizo do tamanho de ovos. Ficou todo amolgado, no tejadilho e capon. E a chapa daquela altura não era nada fraca !!!
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