terça-feira, junho 28, 2005

Histórias de Moçambique (3) - A Madalena



Chapéu de Polícia Moçambicana

[446] - A Madalena era polícia de trânsito e de dentro dos seus cerca de noventa quilos bem acondicionados numa farda verde e não aconselhada para o calor, oferecia um sorriso simpático a emoldurar uma dentadura brilhante de branca, que contrastava com a cor da pele. Sim. A Madalena era preta e que me desculpem os arautos do politicamente correcto, mas a rapariga era preta, não havia nada a fazer sobre isso e, mais importante, não me parecia que ela se preocupasse muito com o facto.

No meu percurso de casa para o trabalho eu passava invariavelmente pela Julyus Nyerere (para os "velhos colonos", a antiga António Enes), passava o prédio da TVM, embaixada da África do Sul, embaixada de Portugal (vinte andares cheios de gente…), Palácio dos Casamentos (uma descoberta dos países de Leste…), Rosas de Moçambique (o velho Dionísio das Mahotas…) e aí, virava para a 24 de Julho (que acho sempre se chamou 24 de Julho), com o Piri-Piri à esquina do lado direito.

Pois foi aí, nessa esquina, que eu conheci a Madalena. Mandou-me parar e, sorrindo, disse:

- Vou-te multar.

- E porquê? Perguntei eu.

Os olhos abriram-se mais ainda, num sorriso empático e ela responde fleumaticamente:

- Não trazes cinto. E a multa agora é cem mil…

- Mas, amiga (o tempo do camarada já era…), eu moro aqui perto, ali na Sommershield e ainda não tinha tempo de apertar...

- Eissshhhhhhh… Sommershield é perto? Bó… estás-me a enganar. Esqueceste, né? Sommershield é longe. Vou-te multar.

- Mas, amiga… cem mil? Amiga… como se chama?

- Madalena. Respondeu lampeira e de mento renascido.

- Madalena. Você é a autoridade, mas cem mil é muito e…

- Sim, é muiiiiiiiiito, mas é a lei. Mas se pagares agora pode ser menos.

- E agora é quanto?

A Madalena sorriu de novo, apesar de o sorriso agora ser um pouco mais sério e eu juraria que até com uma ponta de tristeza.

- Vinte mil…

Tirei uma nota de dez mil e entreguei-lha, dizendo:

- Madalena, só posso dar dez mil, vinte mil é muito.

- Está bem, mas amanhã passas aqui outra vez?

… ... ... ...

- Vai lá. (Ao mesmo tempo que guarda a nota de dez mil)

No outro dia passei na esquina do costume e lá estava a Madalena. Já nem me lembrava da cena de véspera. Quando pensei que lá teria de parar outra vez, baixei o vidro do carro e a Madalena diz-me:

- Hoje não multo. Mas amanhã passas cá?

Passei. E entreguei-lhe cinco mil. E foi assim que durante alguns meses eu pagava a minha portagem, quase diariamente, de cinco mil meticais (cerca de vinte e cinco cêntimos de dólar à altura) à minha cúmplice. Eu pagava a portagem e ela deixava-me continuar sem cinto.

Já passaram dez anos sobre esta cena da minha portagem privada, mas a recente descoberta de instruções especiais à nossa GNR avivou-me a memória. É que há corrupção e corrupção. Esta que acabei de referir tinha uma vertente humana, se me é licito usar este termo. A Madalena tinha seis filhos (a portagem diária foi dando para saber estes pormenores) que todos os dias tinham de comer e auferia um salário de cerca de quarenta dólares mensais. Talvez por isso mesmo eu descortinasse a vertente humana nesta corrupçãozinha. A milhas de distância, em significado e em geografia, de instruções oficiosas a agentes da GNR (nacional, nossa) para não multarem ministros e deputados sem seis filhos e, sobretudo, sem sorriso e com dentes quiçá amarelecidos pela nicotina de charutos pós refeições de trabalho a custo superior de um mês de salário da Madalena.

8 Comments:

At 1:56 da tarde, Blogger Pitucha disse...

Espumante

A história é doce mas eu fico sempre perplexa sobre os limites da corrupção! Aceitar a corrupçãozinha é abrir caminho para a corrupção, é criar brechas num edifício que não pode, não deve, ter nenhuma. Claro que a Madalena era uma querida e com seis filhos! Sem esses trunfos talvez não te tivesse tocado o coração e a cor do teu post seria porventura outra.
E talvez a bondade da Madalena não a levasse a abusar da sua autoridade como em outros casos que conhecemos (e tu também, decerto, com tantas paragens pelo continente africano)!
Isto, no campo dos princípios! Se me conter nos limites da tua história é mais um exemplo da humanidade que eu sinto sempre em África e cada vez menos por aqui (não penso que ninguém saiba quem eu sou nos locais onde habitualmente tomo café!)
Um beijo e continua a contar histórias destas que me alimentam a alma.

 
At 2:17 da tarde, Blogger Nelson Reprezas disse...

Pitucha

Tenho uma rejeição profunda por qualquer forma de corrupção. Aliás, esta história releva exactamente da repugnância que me causaram os recentes episódios do julgamento de vários elementos da GNR e que trouxeram a lume as tais "listas" de pessoas que não deveriam ser multadas. Isto num país europeu, supostamente imune a este tipo de compadrios.
O que acontece é que em países do terceiro mundo há uma fronteira muito ténue entre a pequena corrupção (do tipo da que contei) e a eminêncioa de te veres em grandes "assados". E há que saber conviver com este desiderato e quem disser o cintrário, mente. Portanto, espero que tenhas entendido a coisa, não defendi a Madalena, limitei-me a contar um episódio verídico e inócuo no meio de tanta outra corrupção que existe e que faz parte de uma longa lista de episódios que vivi em Moçambique.
E depois... a Madalena era uma querida, de dentro dos seus avantajados cem quilos de peso...
:)))))))

 
At 5:11 da tarde, Blogger Madalena disse...

Que linda história! Ainda por cima com uma homónima como protagonista.
O Herman, que eu agora não vejo porque descambou completamente, disse um dia uma frase que retive como exemplo do seu lado mais sério: que não tinha filhos porque isso era a vulnerabilidade máxima. Acho que é de uma grande lucidez esta observação. É evidente que esta hsitória poderia ter evoluído para a corrupção. Mas não! Evoluiu para uma ajuda amiga!
Beijinhos para ti da outra Madalena que sou eu!

 
At 5:23 da tarde, Anonymous Anónimo disse...

Espumante

A Pitucha já disse tudo. A história é mesmo uma doçura. É , sem dúvida, só uma corrupçãozita. Devia existir outra palavra, mais leve, para essa situação. Mas também acho que a Pitucha tem razão quando diz que não nos podemos levar pelo coração… Mas também concordo contigo, quando dizes que há ocasiões em que temos de saber resolver as questões a contento de todos. Difícil, não é? Mas o que importa é que continues a contar histórias. Já anseio pela quarta. Beijinhos

 
At 10:06 da tarde, Blogger Nelson Reprezas disse...

Madalnea

Podes ser a outra Madalena mas não pesas 100 kilos que eu já vi uma foto tua no Chuinga :))) Foto pequenina, como aliás todas as que a IO publica, minúsculas, mas deu para ver :))
Beijinho para ti

 
At 10:08 da tarde, Blogger Nelson Reprezas disse...

Laura Lara
Na verdade é necessária alguma sabedoria para lidar com algumas situaçôes :))
Tenho muitas historietas deste género, sem qualquer valor literário mas que gosto de recordar.
beijinho

 
At 6:55 da manhã, Blogger lilla mig disse...

Recorda mais, escreve, escreve! :)

 
At 7:14 da manhã, Blogger Nelson Reprezas disse...

lilla mig

Beijinho para ti :)

 

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