Histórias de Moçambique (2) - O Domoína
[443] - Na década de oitenta, o Sul de Moçambique foi fustigado por uma violenta depressão tropical, o Domoína.
Seriam talvez umas seis da tarde quando tudo começou. Durante doze horas, chuva torrencial abateu-se sobre Maputo, empurrada por ventos ciclónicos que atingiram os 180 km /h. Na manhã seguinte dei uma volta pela cidade, sob um céu cinzento leitoso. O mar apresentava uma calmaria assustadora, mais parecendo uma folha de alumínio e as ruas e avenidas da cidade estavam pejadas de árvores de grande porte virtualmente arrancadas pela força do fenómeno.
Cerca do meio dia as notícias chegavam mais concretas. A destruição incidira naturalmente no "caniço", onde muita gente ficara sem casa e a cidade de cimento estava sem água e sem luz. Muitos carros apareciam também empurrados contra as árvores e ninguém parecia conhecer exactamente a dimensão da tragédia.
Foi já pela tarde que se percebeu que havia alguns milhares de pessoas virtualmente isoladas ao longo dos rios Maputo, Tembe e Umbelúzi e havia que fazer alguma coisa. A rádio lançou um apelo a todos os possuidores de embarcações de recreio para ajudarem a recolher vítimas da enxurrada.
Apresentei-me de imediato no Clube Naval e após uma mínima organização sobre quem ia para onde, rumei à foz do rio Maputo, cerca de dez milhas a leste da cidade. Pouco depois de ter deixado o Clube comecei a aperceber-me da dimensão da tragédia. Dezenas de animais mortos eram arrastados pela corrente, animais domésticos e selvagens e o drama atingiu o pico mais alto quando, entre os animais, começaram a aparecer também cadáveres flutuando entre tectos de palhotas, árvores inteiras, carcaças de viaturas velhas e muitos animais domésticos. Contactado o controle das operações no Naval por rádio, fomos informados (éramos oito barcos destinados ao rio Maputo) que deveríamos seguir rio acima e desprezássemos os cadáveres pois havia notícia de muitas centenas de pessoas abrigadas nas copas das árvores e, portanto, não poderíamos nem deveríamos perder tempo a recolher os corpos.
Subimos o rio numa operação bastante difícil, já que era praticamente impossível distinguir o leito, tal a massa de água em direcção ao mar. Era um espectáculo duma violência indescritível, milhares de hectares sob uma massa imensa de água lamacenta arrastando os despojos para o mar. Chegados a Salamanga (uma povoação entre Maputo e a Ponta do Ouro e distanciada cerca de 15 quilómetros do litoral), começámos a ver as primeiras vítimas vivas. Dezenas de mulheres e crianças empoleiradas nas copas de árvores, gritando umas, cantando outras, algumas das árvores ameaçando cair de um momento para o outro.
Procedemos então ao salvamento em condições muito complicadas. Não só a manobrabilidade das embarcações exigia perícia e cuidado por força da corrente e dos destroços arrastados como, surpreendentemente, as pessoas NÃO queriam abandonar as árvores, E foi assim que por cada pessoa que eu conseguia meter no meu barco era necessário para além de verdadeiros prodígios de pilotagem, um autêntico sermão de um marinheiro do Clube que me acompanhava, o Judas, convencendo as vítimas a saltarem para o barco. Foi uma cena dramática... ver mulheres e crianças a gritar, em pânico, no cucuruto de árvores que se iam tornando cada vez mais frágeis e a recusarem-se a lançar-se para os barcos.
Regressámos a Maputo já de noite, tendo salvado umas dezenas de pessoas, no conjunto dos oito barcos. A viagem de regresso fez-se em silêncio só interrompido pelos contactos rádio a dar nota da posição dos barcos da expedição. Aos comandos do barco eu ia pensando naquela gente que eu conseguira salvar, com a ajuda do Judas e nos muitos que não pudemos salvar com o cair da noite. Senti uma revolta muito grande por ter de morrer gente assim.
Uns dias depois e numa cerimónia simples no Clube Naval, o Director Nacional do Departamento das Calamidades Naturais fez um pequeno discurso de agradecimento ao grupo de pessoas que colaboraram com as suas embarcações no salvamento de algumas vidas e recebemos um prémio simbólico: - Um saco de amendoim, uma embalagem de cigarros Palmar, um queijo do Chokwé, cinco embalagens de bolachas da "Ceres", uma peça de artesanato e uma capulana. Prémio que de imediato oferecemos à organização de auxílio às vítimas, tendo reservado para mim a peça de artesanato e um diploma de mérito concedido pelo Governo da Republica, na altura Popular, de Moçambique.
Seriam talvez umas seis da tarde quando tudo começou. Durante doze horas, chuva torrencial abateu-se sobre Maputo, empurrada por ventos ciclónicos que atingiram os 180 km /h. Na manhã seguinte dei uma volta pela cidade, sob um céu cinzento leitoso. O mar apresentava uma calmaria assustadora, mais parecendo uma folha de alumínio e as ruas e avenidas da cidade estavam pejadas de árvores de grande porte virtualmente arrancadas pela força do fenómeno.
Cerca do meio dia as notícias chegavam mais concretas. A destruição incidira naturalmente no "caniço", onde muita gente ficara sem casa e a cidade de cimento estava sem água e sem luz. Muitos carros apareciam também empurrados contra as árvores e ninguém parecia conhecer exactamente a dimensão da tragédia.
Foi já pela tarde que se percebeu que havia alguns milhares de pessoas virtualmente isoladas ao longo dos rios Maputo, Tembe e Umbelúzi e havia que fazer alguma coisa. A rádio lançou um apelo a todos os possuidores de embarcações de recreio para ajudarem a recolher vítimas da enxurrada.
Apresentei-me de imediato no Clube Naval e após uma mínima organização sobre quem ia para onde, rumei à foz do rio Maputo, cerca de dez milhas a leste da cidade. Pouco depois de ter deixado o Clube comecei a aperceber-me da dimensão da tragédia. Dezenas de animais mortos eram arrastados pela corrente, animais domésticos e selvagens e o drama atingiu o pico mais alto quando, entre os animais, começaram a aparecer também cadáveres flutuando entre tectos de palhotas, árvores inteiras, carcaças de viaturas velhas e muitos animais domésticos. Contactado o controle das operações no Naval por rádio, fomos informados (éramos oito barcos destinados ao rio Maputo) que deveríamos seguir rio acima e desprezássemos os cadáveres pois havia notícia de muitas centenas de pessoas abrigadas nas copas das árvores e, portanto, não poderíamos nem deveríamos perder tempo a recolher os corpos.
Subimos o rio numa operação bastante difícil, já que era praticamente impossível distinguir o leito, tal a massa de água em direcção ao mar. Era um espectáculo duma violência indescritível, milhares de hectares sob uma massa imensa de água lamacenta arrastando os despojos para o mar. Chegados a Salamanga (uma povoação entre Maputo e a Ponta do Ouro e distanciada cerca de 15 quilómetros do litoral), começámos a ver as primeiras vítimas vivas. Dezenas de mulheres e crianças empoleiradas nas copas de árvores, gritando umas, cantando outras, algumas das árvores ameaçando cair de um momento para o outro.
Procedemos então ao salvamento em condições muito complicadas. Não só a manobrabilidade das embarcações exigia perícia e cuidado por força da corrente e dos destroços arrastados como, surpreendentemente, as pessoas NÃO queriam abandonar as árvores, E foi assim que por cada pessoa que eu conseguia meter no meu barco era necessário para além de verdadeiros prodígios de pilotagem, um autêntico sermão de um marinheiro do Clube que me acompanhava, o Judas, convencendo as vítimas a saltarem para o barco. Foi uma cena dramática... ver mulheres e crianças a gritar, em pânico, no cucuruto de árvores que se iam tornando cada vez mais frágeis e a recusarem-se a lançar-se para os barcos.
Regressámos a Maputo já de noite, tendo salvado umas dezenas de pessoas, no conjunto dos oito barcos. A viagem de regresso fez-se em silêncio só interrompido pelos contactos rádio a dar nota da posição dos barcos da expedição. Aos comandos do barco eu ia pensando naquela gente que eu conseguira salvar, com a ajuda do Judas e nos muitos que não pudemos salvar com o cair da noite. Senti uma revolta muito grande por ter de morrer gente assim.
Uns dias depois e numa cerimónia simples no Clube Naval, o Director Nacional do Departamento das Calamidades Naturais fez um pequeno discurso de agradecimento ao grupo de pessoas que colaboraram com as suas embarcações no salvamento de algumas vidas e recebemos um prémio simbólico: - Um saco de amendoim, uma embalagem de cigarros Palmar, um queijo do Chokwé, cinco embalagens de bolachas da "Ceres", uma peça de artesanato e uma capulana. Prémio que de imediato oferecemos à organização de auxílio às vítimas, tendo reservado para mim a peça de artesanato e um diploma de mérito concedido pelo Governo da Republica, na altura Popular, de Moçambique.
Nesse mesmo dia rumei à Ilha da Inhaca com a família (filhotes muito pequeninos ainda e um ainda por vir...) para o conforto do Hotel que tinha água e luz, enquanto Maputo permanecia às escuras e sem água. Na mesma altura em que muita gente em locais mais remotos de acesso impossível continuava, provavelmente, na copa de uma árvore, à espera de morrer.
Nessa noite dormi muito mal...
6 Comments:
Tão real que até senti um arrepio ao ler a história. Fico à espera da terceira.
Tá-tá
Fico sempre espantada como, tanta vez, o mais difícil é salvarmo-nos de nós mesmos...
Laura Lara
Tinha um milhão de histórias que gostaria de contar. Pode ser que saia uma ou outra de vez em quando.
Beijinho
hipatia
Esse pensamento é profundo :))
Mas és capaz de ter razão
Brijinho e bom resto de domingo
Com as várias mudanças de edifício e de gabinete que já fiz perdi um texto do Mia Couto que ele escreveu durante as últimas grandes cheias em Moçambique (2000? 2001?) Um texto lindo, como os teus...
Beijos
Pitucha
Essa dos textos lindos... como os meus, derrete-me e embaraça-me. Mas pronto, eu sei que para além da simpatia tens de cultivar também a diplomacia, que deve ser um mister a que não podes fugir :))
Falando a sério: eu tenho o contacto do Mia Couto, vou ver lhe "arranco" o texto, não prometo, mas tento. Depois envio-to por e-mail, tá? Mas não prometo.
beijinho e obrigado pela tua simpatia.
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