Combustíveis e Comburentes
[467] – No passado Domingo houve 512 fogos no país. Mais do que tragédia sobre pessoas e bens, eu penso que estamos perante o caos institucionalizado por nós próprios, portugueses, condóminos destes 92.000 km2 de território que, aparentemente, não conseguimos gerir.
Contrariamente a muitas razões aduzidas para a existência dos fogos, eu penso que os verdadeiros culpados são as pessoas. As pessoas que somos nós e que instituimos uma série de procedimentos, hierarquias e atribuições sobre tudo e que nunca sabemos observar ou como lidar com eles. Senão vejamos:
- As florestas são plantadas com critérios discutíveis, quando há critérios. Falar em espécies é uma situação algo falaciosa, dado que tanto o pinheiro como o eucalipto são espécies de eleição do ponto de vista de retorno de capital e mesmo o apregoado esgotamento dos solos em água e nutrientes é mais uma bandeira ecológica do que uma realidade. Eucaliptos e resinosas são plantados em toda a parte do mundo e se os solos receberem o retorno do consumo de nutrientes (basicamente azoto, fósforo e potássio) e se a gestão da água for eficaz, podemos cobrir todo o território de floresta que os solos não se degradam. Compensados de NPK, beneficiam ainda do aumento de manta morta e consequente tapete humífero. Mesmo a acidez pode ser facilmente corrigida e, a ser assim, não chega a haver lateritizição, que é o que acontece aos solos sujeitos a empobrecimento continuado;
- O ordenamento do território é consabidamente desastroso. Se é assim nas urbanizações selvagens do litoral, não se percebe porque não haveria de sê-lo no interior. As florestas são, geralmente, plantadas a esmo, com critérios pouco rigorosos ou sem critério algum, frequentemente salpicadas de casas, legais ou clandestinas, com os respectivos palheiros, medas e silos. Depois de plantadas são raramente cuidadas. A limpeza das mesmas não se faz e dificilmente se vê, mesmo, quem a poderia fazer. Muitos proprietários são idosos e naturalmente ignorantes sobre técnicas de floresta e florestação;
- Os bombeiros são tesos e voluntariosos. Duvido, porém, que estejam devida e especificamente preparados para grandes fogos florestais. Houve um ministro de agricultura que disse isso mesmo, o que era uma evidência, e foi quase linchado pela mole imensa das consciências iluminadas da paróquia que acharam que a declaração do ministro (Sevinate Pinto) era uma afronta ao bom nome e excelente desempenho dos bombeiros. Acresce que estão enquadrados por um emaranhado de competências e hierarquias que ninguém, mas ninguém, entende. Todos acham que mandam, todos determinam sobre a tutela que, verdadeiramente, não existe;
- Os meios de combate são escassos e nunca serão suficientes para a dimensão da catástrofe que anualmente se abate sobre nós. Mesmo os poucos que existem são objecto de procedimentos burocráticos idiotas e desfazados das necessidades. Com concurso ou com ajuste directo nada se faz ou compra que não seja objecto de gritaria das oposições, seja qual for o partido que estiver no governo. Há ainda as comissões, os interesses, as benesses e compadrios em que somos férteis;
- Os fogos são um modo de vida para muita gente e geradores de empregos e de fortuna. Seja de madeireiros, imobiliários, autarcas, pilotos, empresários de vários ramos, mas são. Não se vê como tantos interessados possam abdicar de tão generosa fonte de rendimento;
- Os governos são incompetentes, palavrosos, trapalhões e desonestos. Não se vislumbrou ainda algum que, de uma vez por todas, tivesse a coragem e a competência de colocar o problema dos fogos ao nível dos outros países. Fogos, claro, mas com a devida organização de retaguarda para os combater. Passa-se com os fogos exactamente o mesmo que se passa com a discussão do orçamento, com a construção de um novo aeroporto ou com a legislação sobre o arrendamento. Nada, mas nada é feito com consciência colectiva e cívica, mas antes e sempre no meio da gritaria e da zaragata donde emanam particularidades do nosso povo que podem ser muito interessantes para estudos sociais e antropológicos, mas que são claramente danosos da nossa vida em sociedade;
- As pessoas, de um modo geral, estão mal preparadas e mal defendidas dos fogos. É uma massa maioritaria e desgraçadamente ignorante que, com a queda das primeiras chuvas de Outono, esquece rapidamente o braseiro de Verão e se entrega de novo e sempre e alegremente a práticas lesivas do interesse nacional. Casas semeadas a esmo, muitas no meio de matas, sem defesas, rodeadas de palheiros, celeiros, fábricas de tintas, de fogos de artifício, oficinas e toda a parafernália que os portugueses sabem e gostam de ter e cuidar como se de um animal de estimação se tratasse;
- Finalmente, há os maluquinhos. Aqueles que, porque sim, resolvem deitar fogo a tudo o que arda. E outros não tão maluquinhos assim mas que com uma caixa de fósforos na mão se julgam donos de mundo e, com eles, fazem a catarse dos seus inúmeros e graves problemas existenciais.
Eu sei que Portugal é um país de clima e condições propícios à ocorrência de fogos. Diria mesmo que somos um país combustível. A nossa desgraça é sermos, nós, as pessoas, tão comburentes.
8 Comments:
Excelente. Subscrevo sem qualquer reserva. Parabéns!
Brilhante, meu caro espumante.
Leitora atenta
Percebo! Mas há que fazer qualquer coisa não? Ou vai tudo continuar na mesma enquanto esperamos a intervenção divina, isto é, a chuva?
Vi um programa na TV francesa sobre a prevenção dos fogos florestais (eles tiveram um muito grande perto de Marselha há uns anos) e fiquei a pensar que nós nos podiamos inspirar. Claro, se houver vontade política para tal...
Disseste tudo, Espumante...
torquato da luz
Obrigado pelas suas amáveis palavras
Leitora Atenta
Obrigado. espero continuar a merecer a atenção :)
Pitucha
Os fogos são apenas um exemplo da nossa paupérrima consciência de vida colectiva.
Lilla Mig
Obrigado pelas tuas palavras e um beijinho
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