segunda-feira, outubro 18, 2004

Libertação



Picasso - Mulher a ler

A vida tem birras que a razão desconhece. Não foi bem isto que Pascal disse, mas anda por lá perto. Tal como as crianças. E se às crianças se pode fazer prevalecer uma vontade contrária à birra, porque achamos que a birra é desajustada ou irracional e é só isso mesmo, uma birra, já com a vida as coisas são algo diferentes. A vida não é uma criança, é demasiadamente velha para ter birras e, todavia, mantém a atitude pueril de ter birras e nos fazer pirraças. Ora não se pode dar uma palmada no rabo da vida nem pô-la de castigo um fim de semana sem brincar com a Play Station. Nem a vida tem rabo nem porventura gostará de jogar com a Play Station. Que fazer, portanto? Ignorar a birra? Assumir uma atitude de aquiescência e fazer o jogo da vida? Zangarmo-nos com ela só porque tem birras?

Com birras ou sem elas, a vida é demasiadamente boa e importante (apesar de...) para que nos zanguemos com ela. Há que fruí-la e conceder-lhe o benefício da dúvida sobre as verdadeiras razões das birras que tem. Encontrar espaços que acomodem as nossas próprias e racionais birras ( a mania que temos de que tudo tem de ser racional...) com as birras da vida e tirar disso algum proveito. Um proveito que acabe por nos conceder o privilégio de sabermos e podermos ser equilibrados naquilo que a vida exige de nós, em termos de comportamentos sociais e respeito pelas sequelas do nosso instinto gregário e, por outro lado, saudavelmente loucos naquilo que de bom esperamos e pensamos ter direito a extrair dela. E é encontrando esses espaços que talvez consigamos atingir o equilíbrio necessário para que o possamos perder ( o equilíbrio ) todas as vezes em que nos der na gana ser loucos. Porque é nessa loucura que podemos continuar a sentir-nos vivos, sãos, doentes, apaixonados, indiferentes, contentes, tristes, desiludidos, realizados, traídos ou traidores. Numa palavra, felizes. E, felizes, poderemos sempre dizer à vida que, aqui e ali, não estamos para lhe aturar as birras. Ou mesmo, porque não, dar uma sonora palmada no rabo que a vida deveria ter.

Não sei bem porquê, mas a verdade é que hoje não me apetece transigir com as birras da vida. Apetece-me mais meter a racionalidade na gaveta e cantar um hino à liberdade de, querendo, não me libertar daquilo que gosto. Pode ser que seja uma birra minha. Mas é minha e faço-a quando quiser...

6 Comments:

At 9:14 da manhã, Blogger Passada disse...

sempre, sempre adorei este teu espírito independente

 
At 9:01 da tarde, Blogger Francisca disse...

"It's my party and I'll cry if I want to".
Às vezes pensamos que a nossa vida é a nossa exclusiva festa e que a birra - desde que alheia - só pode ser irracional. E se estivermos errados? E se tivermos que pensar melhor antes de escrevermos textos tão bonitos?
Já viu que estou, obviamente, a embirrar consigo (no melhor sentido).
Quanto à "libertação" - porque ela passa pelo conceito de liberdade - não a comento porque ficaria aqui a noite inteira e o Espumante não merece tal seca.:)

 
At 9:17 da tarde, Blogger Nelson Reprezas disse...

mmicr.- o espírito é tão mais independente quanto a vida nos ensina que o "self-care" é, injusta e frequentemente, confundido com egoísmo. "Self-care" foi a expressão, provavelmente pouco feliz, que mais depressa me ocorreu para definir o gostarmos de nós e darmo-nos um lollypop aqui e ali... :)

 
At 9:41 da tarde, Blogger Nelson Reprezas disse...

Cara Francisca

Para comentar da forma que gostaria o seu comment, eu arriscar-me-ia a tornar esta caixa de comentários numa sala de chat ou tornar-me, eu próprio, um chat(o). E a Francisca não merece isso.

Faço menção apenas a um NÃO que precede a "libertação" e que é essencial para a compreensão do texto. Ou seja, sermos livres de NÃO nos libertarmos. Mas para quem não repara nos seus links, eu merecia isso mesmo. Que a Francisca não reparasse no "não". :)

Quanto ao pensar bem antes de escrever textos bonitos (palavras suas com a habitual desvanescência), fazê-lo configuraria exactamente a negação do conceito de ter uma birra. E ontem apeteceu-me ter uma. E sim, a Francisca está a embirrar comigo :))))

E depois, como resistir à genialidade daquele quadro de Picasso?

Um beijinho amigo

 
At 11:52 da manhã, Anonymous Anónimo disse...

Li, à pressa, em "diagonal" e gosteeeeiiiii. Tanto que até imprimi. E tornei a ler, à pressa, e gostei muito...muito. Será que quando o ler, calmamente, vou gostar ainda mais?
- Gota

 
At 11:18 da manhã, Blogger Nelson Reprezas disse...

Cara Gota
Aina bem que gostou na diagonal. Estou certo de que gostará em bissectriz e em cateto ao quadrado :)))
Obrigado pelas suas simpáticas notinhas.

 

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