terça-feira, outubro 12, 2004

O almoço



Pertenço a uma tribo que consagra e diviniza alguns aspectos da sua existência. De entre eles, o calorzinho do corpo, aqueles 36 grauzinhos e meio que Deus nos deu, é um dos que mais me impressionam. Não há nuvem no céu, por pequena que seja, que não espolete uns milhares de "leva um casaquinho que está a refrescar", a nível nacional. Uma corrente de ar, um ar condicionado num restaurante, um pequeno chuvisco, uma "mudança de temperatura" são tudo coisas que geram no espírito dos portugueses uma imediata reacção de precavida atitude. Não vá o diabo tecê-las. Eu, que aos dois dias de idade tirei uma fotografia, nú, no pinhal da Encarnação (hoje a execrável Segunda Circular) tive a sorte de ter um pai com uma notável capacidade de me passar por osmose a sensibilidade do reconhecimento das nossas deliquescentes reacções de fado e tragédia, acabei, com o tempo, por perceber que Portugal tinha um dos mais privilegiados climas do mundo. A parte negativa da coisa é que depressa me apercebi, também, que somos as maiores "flores de estufa" do mesmo mundo. Melhor... não somos. Gostamos é de o ser, enformando a canção da desgraçadinha para quem tudo é mau, perigoso, trágico. Como uma simples e perigosíssima aira de Verão.

Mas eu queria mesmo era falar do almoço. Do divino, sacrossanto, inadiável e solene almoço. Nada se faz sem almoçarmos. A vida pararia se não almoçássemos. Por isso, a vida pára porque temos de almoçar, para evitar que a vida parasse porque não almoçamos. Em grande parte dos países civilizados do mundo (não é a essa parte que pertencemos?), o almoço é uma refeição que se toma porque temos fome durante o dia e dá, frequentemente, muito jeito para se continuar a tratar do que estávamos a fazer, como um negócio, por exemplo. Por outro lado, serviços de atendimento geral mantêm-se activos e até acredito que as pessoas almocem, deve é haver algum "engenhoso e avançadíssimo" plano de alternância de funcionários que possibilita o atendimento das necessidades dos cidadãos. Para nós, portugueses, a coisa não é bem assim. O português pára, virtualmente, todos os dias, para almoçar. Criei até a ideia que nem mesmo uma grande catástrofe, tipo terramoto de 1755, alteraria as coisas, quando muito (shhhhhiu, F. Thomaz, não é nada "quanto muito")alteraria rotinas. Género, é pá, hoje temos de ir a Campo de Ourique porque os restaurantes da Estrela foram abaixo com a merda do terramoto. Lá está o "rés-vés-Campo de Ourique" a dar muito jeito, até para escrever este post.

A hora de almoço não existe para mais nada que não seja para isso mesmo. Para almoçar. Nos países civilizados, os horários são já períodos continuados, as pessoas de atendimento são revezadas por forma a que os utentes, os cidadãos, que por acaso pagam impostos e votam nos caciques para serem respeitados, o sejam. Respeitados, está bem de ver. É certo que algumas repartições públicas, urgências de hospitais e outros serviços já não fecham para almoço, o problema é que estão abertos mas os funcionários, a partir da uma, estão ausentes. Porque foram almoçar. É estranho, mas é isso mesmo que acontece.

Tudo isto me ocorre porque ontem tive necessidade de "queimar" um dia no hospital Curry Cabral, a acompanhar um parente. A longa espera a que fui submetido (tive azar porque não era dia de o Jorge Sampaio lá ir) proporcionou-me a observação dos mais variados diálogos entre os utentes, doentes, enfermeiros, condutores de ambulâncias e muita gente que eu não sabia bem o que andava por ali a fazer, mas provavelmente estaria a fazer o mesmo que eu. Havia também um elevado número de gente a falar ao telemóvel. Muitas das conversas eram relativas ao estado dos doentes que ali levavam. Tinha sangue muito espesso, tinha o sangue muito fino, anda com uma tosse esquisita há dois dias (devia ser do tempo), a dor nas costas agora "está-le" a passar para as pernas, foram coisas que ouvi, entre muitas outras "urgências" do género. Mas, pasmem. Posso garantir que muitas, mas muitas, das conversas de telemóvel que ouvi versavam, guess what... o almoço. Diz à Vanessa que vá pondo as costeletas de carneiro a descongelar", "tira o aroz que está dentro do forno e depois come-se com qualquer coisa", "tempera aqueles dois bifes que..." são expressões que não escaparam à preocupação dúplice dos presentes, ou seja o estado dos doentes e o que "se almoçava", mais ou menos na mesma proporção. A sala de triagem também sofreu um ajuntamento à porta por volta da uma e um quarto, porque " o doutor foi almoçar" e hoje já telefonei umas seis vezes para o número que ontem me indicaram para eu saber notícias da pessoa que ontem acompanhei e que, entretanto, baixou, mas não obtenho resposta. Quando liguei para o número geral do hospital e disse isso mesmo, que estava há meia hora a tentar telefonar para as "urgências do sector em questão" e obtive a resposta que ligasse "por volta das três" porque estavam a almoçar, apeteceu-me mandar isto tudo à merda e só não mando porque andei anos a ensinar os meus filhos que praguejar era grosseiro e de mau gosto. E sendo que falta meia hora para eu eventualmente obter resposta do tal número de telefone, aproveito... e vou almoçar.

3 Comments:

At 7:42 da tarde, Blogger Passada disse...

ensinada até estou mas às vezes dá mesmo cá uma vontadinha perversa de o fazer que nem calculas. Uma curta e já que se fala de hospitais, tive há dias o meu designer de baixa com malária e numa sala de cerca de 4m quadrados encontravam-se nada mais nada menos que 9 pacientes, na sua maioria com malária e seus efeitos nefastos, especialmente aquele que dá voltas ao estômago. Após a primeira incursão aos ambientes de estômago, ali mesmo e junto de um estatelado no chão, pergunto à minha funcionária "Oh Maria, porque está toda a família a olhar e não chama uma enfermeira para limpar e assistir" ao que respondeu "Não se preocupe, é a própria família que limpa, estão só à espera que acabe". Arrepiei mas entendi porque cada cama tinha cerca de 5 a seis familiares de volta de cada cama!

 
At 11:05 da tarde, Blogger Nada de novo na frente ocidental disse...

Ao menos almoçou bem??? ou foi aquela sandinhas do costume? Almoçe, ou um dia lá dão consigo a falar ao telemóvel numa sala de espera de um hospital. Va lá, almoce, homem! Almoçar é português, pá!

Ri-me imenso com este seu 'post'. E perdi o apetite.

 
At 12:02 da manhã, Blogger Nelson Reprezas disse...

Meu caro ABF: Perder o apetite, não. Veja lá que depois faltam-lhe as forças para atingir od "objectivos"... :)

 

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