Ouviste?
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O casal idoso sentou-se na mesa ao lado. Ele, de calça escura
e casaco amarelado, camisa apertada sob uma gravata de traça antiga, cabelos
brancos penteados de forma impecável bem para trás. Ela, baixa e pequenina, maquilhada e «emperiquitada», vestido justo a realçar-lhe carnes abundantes na cintura e nas ancas. E uma
camisola de generoso abafo que lhe escondia parte de um pescoço envelhecido. Cabelos grisalhos,
curtos e encaracolados pela plissagem detalhada e recente de um qualquer salão
de cabeleireiro. Olhos pequeninos e muito vivos, por detrás de uns óculos
denunciando um avançado astigmatismo.
Pediram o prato do dia – cozido à portuguesa, após o que,
sem escapatória nem remissão, ouvi este diálogo que vou tentar reproduzir em discurso directo:
Ela: Uma dose dá para os dois, né? Além de que não podemos
esquecer o teu colesterol e a diabetes, ouviste? Comes só um bocadinho dos enchidos,
ouviste? Comes as couvinhas, não faz mal e alimenta, ouviste? Sobremesas é que
não. Tens diabetes, ouviste?
Ele: Mmmmmm!...
Ela (Chegando-se à frente e cruzando as mãos e olhando para
ele como quem olha para o periquito que deixou de comer há três dias e por quem
ela estremece de preocupação): Também não comas chispe nem orelha… tens
diabetes e colesterol, ouviste? Comes as couvinhas que não fazem mal e
alimentam. E a batatinha cozida também. O arroz, primeiro temos de ver se é
cozido na água do chouriço de sangue. Ah! Os enchidos nem pensar, ouviste?
Morcela e chouriço de sangue então nem pensar, ouviste? Têm sangue e eu sempre ouvi dizer que o que tem sangue
faz sempre mal ao colesterol. Por isso é que eu te digo que não podes comer
cabidela, ouviste? Eu sei que gostas, mas faz-te mal, ouviste?
Ele: Mmmmmm!...
Cerca de dez minutos e mil «ouviste» depois, chega a
travessa do cozido.
Ela: Ah! Ponha aqui (o empregado pôs, e ela de imediato
iniciou uma prática exploratória da travessa).
Ela (para ele): Olha aqui, Fernando (levantava as hortaliças
com o garfo e mostrava o arroz escuro). Este arroz é feito com a água dos
enchidos, ouviste? Não podes comer, ouviste? Olha, tens aqui… nabo, o nabinho
faz bem. Uma couvinha (continuava remexendo irritantemente a travessa),
cenoura, podes comer cenourinha, ouviste? Mas isto não tem frango… só tem …
eia, tanto chispe, não podes comer chispe, ouviste? Nem orelha. Uma fatiazinha
de carne. Esta carninha é de vaca, não faz mal, ouviste? E remexia, remexia e
remexia a travessa. Aqui e ali, ia-se servindo ela própria de chouriço,
morcela, chouriço de sangue, farinheira, chispe e orelha… deixa escorrer bem as
couves - esta água do cozido também não faz nada bem, ouviste?
Ele: Mmmmmm!
Ela (cortando cerca de um quarto duma rodela de chouriço de carne):
Pronto, Podes comer este bocadinho. Mas mais não, ouviste? Só para te tirar a água
da boca, ouviste? Mas só esta, ouviste?
Ele: OUVIIII! Cala a boca, poooorra.
Este post podia ter o triplo do tamanho. Mas não quero
abusar da paciência de ninguém. Quero apenas afirmar que este episódio é
rigorosamente verdadeiro e o «porra» foi lançado uns bons decibéis acima do
expectável numa criatura de aparente debilidade física. Ainda olhei de novo só
para ver se a seguir ao «porra» ela ainda apanhava com uma rodela de morcela
num olho, mas o homem conteve-se.
Quando eu for grande e velhinho, quero uma mulher que não goste
de cozido à portuguesa. Sobretudo, jamais lhe mostrarei as minhas análises… era
o que faltava, ela saber se tenho colesterol ou diabetes, ouviram?
.
Etiquetas: coisas simples, quando o gineceu não se cala
5 Comments:
Adoooorei!!
Também já me aconteceu ver casais a almoçar, a mulher calada e o homem não se cala. Duhhhh!
Também adorei!
Eu adoro Cozido, ouviste??? lol
Escrevi em inglês porque os "motes" são em inglês (do livro "642 things to write about") ... mas não está a resultar ... vou ter que mudar para o nosso rico português! ...
... ouviste??
Sinapse
Óbi, carago :)))
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