sábado, agosto 18, 2012

Os actos políticos

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Valha-nos a Helena Matos com a sua habitual minúcia e presteza em desengavetar tralhas antigas e pôr a ridículo as tralhas modernas. Ou de como há galinheiros maus e colmeias boas.

Houve uma altura em que joguei râguebi na Académica. Ao tempo do professor Bruno como treinador. Lembro-me que no fim dos treinos (no estádio universitário, o do Calhabé era para o futebol) havia sempre um ou dois líderes estudantis que nos substituíam de imediato as estratégias de jogo do professor Bruno por uma autêntica barrela ao cérebro através da retórica inflamada anti-salazarista habitual. Eu não sabia bem porquê, era um jovem inexperiente, mas sabia que Salazar, entre outras malfeitorias, era um ditador, um provinciano, um fascista e um asceta deplorável que nos queria a todos pobrezinhos e que para nos dar o exemplo criava galinhas em casa. Tudo isto se me chocalhava na cabeça, como, de resto, à maioria dos meus colegas, mas se aqueles líderes o diziam, mais velhos, mais adiantados e com muito mais experiência que nós é porque devia estar certo. Também devíamos partir montras e bater em polícias. Frequentemente me perguntavam se eu alguma vez tinha batido num polícia e quando eu dizia que não, de imediato se instalava em mim um sentimento de culpa muito grande. Também me questionavam se alguma vez algum polícia me batera. Era urgente a absolutamente necessário que um polícia me batesse, ou que eu batesse num polícia, sob pena de eu não ser um entre iguais. Apesar de muitos como eu nunca terem sido brutalizados pela polícia. Lembro-me de um dia um de nós dizer que o facto de Salazar criar galinhas em casa era um acto político. O líder retrucou que o «cagar é um acto político». Lembro-me como se fosse hoje. Fiquei pensando na relação política entre o cagar e criar galinhas e não consegui chegar a nenhuma conclusão. Mas devia haver alguma porque o tal líder falava e falava e falava e embora não falasse em galinhas nem em merda, parecia haver ali um fio condutor qualquer.

Porque é que isto me veio à ideia? Nem sei bem. Talvez porque ser do reviralho era um estado de alma e hoje quando oiço muitos políticos no activo apresentarem como currículo o facto de terem sido anti-salazaristas na Academia, eu lembro-me bem das minhas angústias por nunca ter sido sovado por um polícia, ou da filosófica interpretação de alguns líderes estudantis sobre o cagar, como acto político. E percebo hoje como muito do que parecia ser ridículo e condenável, como um primeiro-ministro a criar galinhas, acaba por se tornar num exemplo feliz de boas práticas, quando se trata de personagens politicamente correctas. E de como os idiotas úteis não estão realmente em perigo de extinção.
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