domingo, junho 24, 2007

A corrente da Madalena

[1833]

A pedido da
Madalena, aqui estou a citar o último livro que li. Cobra de papel de Isabel Cristina Pires. Não consigo lembrar-me da cronologia dos outros. Porque, minha amiga, leio muito. E leio pouco. A minha vida não se ajusta à rotina de leituras de livros, infelizmente. Talvez porque, mesmo a trabalhar, leio muito. Todos os dias leio. Livros técnicos, está bem de ver, E depois há os jornais. Sou um leitor compulsivo de jornais em edição papel e, de há três anos para cá, de inúmeros jornais na net. Criei, assim, hábitos, que não sei se são bons se são maus. Mas são os que criei. Daí que a leitura de livros, nos últimos anos esteja a recair mais em poesia. Porque gosto e porque posso ler com mais intermitência.

E pronto, não te quebrei a corrente.

Deixo-te aqui um poema do livro que referi lá em cima. É uma escritora portuguesa pouco conhecida mas, na minha modesta opinião, brilhante. E que tenho o privilégio de conhecer pessoalmente desde há cerca de oito anos. Ora lê:

FEMININO, SINGULAR

Sou composta por cubos e por esferas
donde brotam meigos decaedros
sou composta por trapos, manchas de tinta sem plano
e dedos rupestres a castanho,
o ocre na vizinhança do rosado, o pó de lápis-lazúli
na clara de ovo, o vermelhão nos seios,
sou composta de diálogos. frouxos, de troncos
de árvores em pleno verão,
das ternuras de um gato preto e branco, de insectos
de níquel a voar brilhando, sou composta
de pêlos que caem no outono e águas duras.
Sou composta por mãos que doem nos braços e
por regaços com olhos sempre à superfície,
sou composta de estrelas na tapeçaria do palácio, de gritos
na rua – quem me chama? –,
de nuvens de hélio e náiades em gaiolas, facilitam
a visão, as trocas, o comércio com os homens,
sou composta pela morte que de vez em quando acorda,
por isso desconfio, sou composta pelo desejo que grita
de tal modo que não se ouve ao perto,
sou composta pela água que oscila com as marés, pelo
vapor da submissão, pelo destino obstinado.
Ou eu não fosse uma mulher.

Cobra de Papel, Ed. Caminho


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5 Comments:

At 10:43 da tarde, Anonymous Anónimo disse...

Na minha ignorância, não a conhecia. Vou já amanhã ver se encontro o livro. Obrigada, Espumante.
Beijinhos

 
At 7:10 da manhã, Blogger Nelson Reprezas disse...

laura lara
É uma mulher de grande sensibilidade e cultura. Tenho muita vaidade na amizade dela. Este Sábado ela vai fazer o lançamento do seu último livro, em Coimbra, que é, aliás, a sua terra natal.
Ainda bem que gostaste do poema.
Boa semana para ti.

 
At 11:05 da manhã, Blogger Madalena disse...

Para além de te agradecer a simpática resposta ao desafio, tenho também de te agradecer, mais ainda, com mais emoção, quero eu dizer, este poema. Tão belo! Ou não fosse eu mulher também e não me tivesse revisto em traços que são inevitavelmente comuns. Desculpa não ter respondido à tua dúvida. Sei que entendes: adiei, adiei e acabei por ser ultrapassada e bem pelo teu belíssimo post. Beijinhos para ti e um abraço feito de poesia que deve chegar até à Passada, se tu lho deres, claro!

 
At 6:57 da tarde, Blogger Nelson Reprezas disse...

madalena
Tive que me desenrascar :)))
beijinho
A Passada está óptima e babadíssima com a sua Stella que já tem 14 meses... imagina tu
beijinho

 
At 6:06 da manhã, Anonymous Anónimo disse...

Isabel Cristina Pires é uma excelente escritora, é verdade. Poderá encontrar algumas recensões que fiz a obras de ICP na minha página: http://mancelos.com.sapo.pt.

João de Mancelos

 

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