Leitura obrigatória. Chocante, mas obrigatória.
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Não é que tenha saído na imprensa dita de "referência". Eu li no 24 Horas. Mas não deixa de ser uma história de contornos bonitos. Ao que parece, há duas semanas, o major Valentim Loureiro, enquanto apelava ao voto "sim" no referendo sobre o aborto, anunciou também publicamente ter dois filhos fora do casamento (um rapaz e uma rapariga), a juntar aos quatro "oficiais". Segundo se percebe pela notícia, o facto não era desconhecido de ninguém em Gondomar, Porto e arredores (e, agora, é conhecido de Portugal inteiro), e a própria família directa já acomodou os descendentes "ilícitos", que jantam todas as sextas-feiras em casa do major. Ambos andam pela casa dos 20 anos e estão integrados na sociedade, estudando Direito e Engenharia.O jornal recolhia vários depoimentos, todos unânimes no reconhecimento da grande humanidade do major. Por exemplo, o ex-secretário de Estado das Comunidades e actual presidente da assembleia parlamentar da NATO, José Lello, considera que o major se "portou muito bem, não distinguindo os dois filhos dos oficiais", acrescentando mesmo, de forma visivelmente comovida, que esta foi "uma faceta bonita que ele teve". Opinião que é partilhada pelo prof. Hernâni Gonçalves (para quem sabe, o "bitaites" dos comentários futebolísticos na televisão), o qual considera todo o episódio "uma situação de grande dignidade". Havendo até quem coloque o major na linha da frente do "combate à hipocrisia e à mentira". É o caso do ex-presidente da Câmara Municipal de Matosinhos Narciso Miranda. Talvez fosse possível pensar de outra forma, considerando um filho como aceitável fruto episódico da imprevidência, mas dois como sendo sinal já de outra coisa. É provável que a razão esteja com o ex-secretário de Estado das Comunidades, quando diz do major: "É um destemperado, como toda a gente sabe."Mas falta aqui um elo crucial para a compreensão da totalidade da história, a esposa do major, a "D. Joaquina". Segundo o jornal que venho citando, a "D. Joaquina" terá aceitado tudo frontalmente. Nas palavras do escultor José Rodrigues, casado com uma irmã da mulher do major, "aceitar isto da maneira que ela aceitou é brutal. Ela tem de facto um grande amor por ele, uma dedicação tão forte que até comove". Opinião secundada por Lello, para quem "a D. Joaquina é que foi a mulher coragem, (...) que evitou fracturas". É uma perspectiva possível. Embora mentes maldosas certamente pensem de outra maneira. Nas palavras de um amigo que prefere o anonimato, a reacção da "D. Joaquina" deixou o major "de rastos", pois ter-lhe-á dito: "Então agora, toca a assumir responsabilidades." O escultor José Rodrigues ainda se lembra do dia em que "com os olhos borrados de água", o major lhe deu a nova: "Vieram os dois aqui ao meu atelier, a Quina e o Valentim (...) e ele (...) virou-se para mim e disse: 'Zé, quero que saibas que tenho dois filhos.'" Aliás, o escultor José Rodrigues aproveita para confessar: "Eu também tenho uma filha de outra senhora." É interessante, porque Rodrigues, recorde-se, é casado com a irmã da esposa do major, a "Lininha". E Rodrigues sente-se muito afortunado, porque "felizmente a Lininha também aceitou a minha filha como se fosse dela". E, melancólico, reflecte: "Parece coisa de irmãs."Não há muitos comentários a fazer a tudo isto, a não ser corroborar a beleza da história. A beleza do impulso para a propagação da espécie. A beleza do impulso para a preservação da família. A beleza da aceitação tranquila do comportamento "desviante". É uma história que segue a longa tradição portuguesa e ocidental de reconhecer no homem a tendência para a polinização e na mulher a tendência para a domesticação dos impulsos mais animais do homem; é a tradição que reconhece à hipocrisia um grande valor social, ao acomodar os comportamentos humanos mais disruptivos. Nessa tradição, de resto, a família surge como o grande instrumento de socialização dos afectos e da sexualidade. Não fosse a família e o homem distribuiria afecto e sexo por todas as mulheres que com ele se cruzassem e o aceitassem. E mesmo quando o faz, quebrando o contrato estabelecido, é a família que evita a multiplicação de vítimas: a esposa, os filhos, os outros filhos resultantes do desvio.É, portanto, com esta matéria-prima que entramos no Portugal moderno, o qual, segundo as vozes mais autorizadas, terá apenas começado no dia 11 de Fevereiro, depois da despenalização da interrupção voluntária da gravidez até às dez semanas, se realizada por opção da mulher, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado. Talvez não fosse este o Portugal moderno com que muitos apoiantes dessa despenalização sonharam. Mas é o Portugal moderno que existe no século XXI. E de uma coisa podemos ter a certeza: não vai ser nenhum referendo nem nenhum "processo Apito Dourado" que vai acabar com ele.
Por Luciano Amaral no DN de hoje.
Não é que tenha saído na imprensa dita de "referência". Eu li no 24 Horas. Mas não deixa de ser uma história de contornos bonitos. Ao que parece, há duas semanas, o major Valentim Loureiro, enquanto apelava ao voto "sim" no referendo sobre o aborto, anunciou também publicamente ter dois filhos fora do casamento (um rapaz e uma rapariga), a juntar aos quatro "oficiais". Segundo se percebe pela notícia, o facto não era desconhecido de ninguém em Gondomar, Porto e arredores (e, agora, é conhecido de Portugal inteiro), e a própria família directa já acomodou os descendentes "ilícitos", que jantam todas as sextas-feiras em casa do major. Ambos andam pela casa dos 20 anos e estão integrados na sociedade, estudando Direito e Engenharia.O jornal recolhia vários depoimentos, todos unânimes no reconhecimento da grande humanidade do major. Por exemplo, o ex-secretário de Estado das Comunidades e actual presidente da assembleia parlamentar da NATO, José Lello, considera que o major se "portou muito bem, não distinguindo os dois filhos dos oficiais", acrescentando mesmo, de forma visivelmente comovida, que esta foi "uma faceta bonita que ele teve". Opinião que é partilhada pelo prof. Hernâni Gonçalves (para quem sabe, o "bitaites" dos comentários futebolísticos na televisão), o qual considera todo o episódio "uma situação de grande dignidade". Havendo até quem coloque o major na linha da frente do "combate à hipocrisia e à mentira". É o caso do ex-presidente da Câmara Municipal de Matosinhos Narciso Miranda. Talvez fosse possível pensar de outra forma, considerando um filho como aceitável fruto episódico da imprevidência, mas dois como sendo sinal já de outra coisa. É provável que a razão esteja com o ex-secretário de Estado das Comunidades, quando diz do major: "É um destemperado, como toda a gente sabe."Mas falta aqui um elo crucial para a compreensão da totalidade da história, a esposa do major, a "D. Joaquina". Segundo o jornal que venho citando, a "D. Joaquina" terá aceitado tudo frontalmente. Nas palavras do escultor José Rodrigues, casado com uma irmã da mulher do major, "aceitar isto da maneira que ela aceitou é brutal. Ela tem de facto um grande amor por ele, uma dedicação tão forte que até comove". Opinião secundada por Lello, para quem "a D. Joaquina é que foi a mulher coragem, (...) que evitou fracturas". É uma perspectiva possível. Embora mentes maldosas certamente pensem de outra maneira. Nas palavras de um amigo que prefere o anonimato, a reacção da "D. Joaquina" deixou o major "de rastos", pois ter-lhe-á dito: "Então agora, toca a assumir responsabilidades." O escultor José Rodrigues ainda se lembra do dia em que "com os olhos borrados de água", o major lhe deu a nova: "Vieram os dois aqui ao meu atelier, a Quina e o Valentim (...) e ele (...) virou-se para mim e disse: 'Zé, quero que saibas que tenho dois filhos.'" Aliás, o escultor José Rodrigues aproveita para confessar: "Eu também tenho uma filha de outra senhora." É interessante, porque Rodrigues, recorde-se, é casado com a irmã da esposa do major, a "Lininha". E Rodrigues sente-se muito afortunado, porque "felizmente a Lininha também aceitou a minha filha como se fosse dela". E, melancólico, reflecte: "Parece coisa de irmãs."Não há muitos comentários a fazer a tudo isto, a não ser corroborar a beleza da história. A beleza do impulso para a propagação da espécie. A beleza do impulso para a preservação da família. A beleza da aceitação tranquila do comportamento "desviante". É uma história que segue a longa tradição portuguesa e ocidental de reconhecer no homem a tendência para a polinização e na mulher a tendência para a domesticação dos impulsos mais animais do homem; é a tradição que reconhece à hipocrisia um grande valor social, ao acomodar os comportamentos humanos mais disruptivos. Nessa tradição, de resto, a família surge como o grande instrumento de socialização dos afectos e da sexualidade. Não fosse a família e o homem distribuiria afecto e sexo por todas as mulheres que com ele se cruzassem e o aceitassem. E mesmo quando o faz, quebrando o contrato estabelecido, é a família que evita a multiplicação de vítimas: a esposa, os filhos, os outros filhos resultantes do desvio.É, portanto, com esta matéria-prima que entramos no Portugal moderno, o qual, segundo as vozes mais autorizadas, terá apenas começado no dia 11 de Fevereiro, depois da despenalização da interrupção voluntária da gravidez até às dez semanas, se realizada por opção da mulher, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado. Talvez não fosse este o Portugal moderno com que muitos apoiantes dessa despenalização sonharam. Mas é o Portugal moderno que existe no século XXI. E de uma coisa podemos ter a certeza: não vai ser nenhum referendo nem nenhum "processo Apito Dourado" que vai acabar com ele.
Por Luciano Amaral no DN de hoje.
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Etiquetas: Portugal moderno, vida
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