Fugir da voz...
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Para a Hipatia, com um beijo amigo e satisfazendo o pedido dela.
A minha voz foge para a tinta que há-de cobrir a parede suja de surro e grafites imbecis onde todos nós vamos escrevendo a nossa própria vida. Tapo com ela o meu próprio surro e a minha própria grafitti que tiveram a época própria dos sonhos e dos ideais frustres que se foram diluindo na voragem e na vertigem dos anos que nos vão comendo a carne e as ideias.
Nessa tinta, contendo a minha foz fugida, ficará a parede da minha imagem pintada, como se espera, de um ser eticamente apresentável como me esforço por ser, mas reprimida será a espontaneidade de pequenas loucuras que foram alimentando a grandeza de uma vida muito cheia, muito boa, mesmo quando muitas coisas más se esforçavam por lhe tirar o encanto. E nessa repressão ficarão dissimuladas também algumas nódoas que não saíram com a benzina que a minha avó usava nas nódoas mais teimosas, tapadas por uma mão de tinta que nos convencionaliza e mergulha na assepsia de uma sociedade cada vez mais idiota e doente de se querer a si própria tão saudável. A tinta é o botão do colarinho que me esconde a naturalidade dos pelos do peito e suporta a gravata do meu descontentamento. Que me reprime o palavrão e me molda a elegância de gestos e de palavras que frequentemente não sinto. A tinta tolhe-me, ainda, o passo que quereria levar-me para as fragas de uma montanha escarpada ou para um areal infinito e bordejado pelo sal dos mares mornos do sul mas, ao invés, me conduz a uma viatura, a uma cadeira de secretária ou a um sofá onde promovo a gordura e canto a imbecilidade de programas de televisão. A tinta compõe, ainda, a imagem bem falante, quiçá nem sempre sincera, decidida e aparentemente segura e de sucesso com que me cubro todos os dias ao levantar-me, depois do banho e me dirijo ao automóvel, mesmo pensando nas nódoas, grafites, fraquezas e ideais desmembrados, convenientemente ocultados pela tinta, temperada com a voz que a Hipatia me pediu para lhe dizer para onde tinha fugido. E é então que prossigo o dia, pintadinho e de fraquezas ocultas, falando aqui, rindo acolá e até as coisas que às vezes me apetece escrever no Espumadamente acabam por se aligeirar na brejeirice de um post pretensamente humorístico, mesmo que razoavelmente conseguido. Como o dos urinóis públicos que tanto fez rir esta gaija do norte e me fez rir a mim de contentamento pela forma como ela se riu (não o linco porque são mais de mil e cem posts e seria uma trabalheira encontrá-lo).
Um dia não deixo fugir a voz. Muito menos para a tinta. Provavelmente até a tinta deitarei fora. Talvez eu aspire por esse dia, talvez tenha medo dele. Porque poderá ser uma forma de libertação que todos nós de alguma forma (este “de alguma forma” fez lembrar o não sei quê Malato, mas juro que foi sem querer…) criamos no nosso imaginário, mas poderá ser também a condenação da minha juventude. Que eu gostaria que fosse eterna mas que eu reparo estar cada vez mais perto de ser piedosamente arrumada numa cómoda qualquer. E, nessa altura, interrogar-me-ei se valerá a pena abrir a gaveta…
Para a Hipatia, com um beijo amigo e satisfazendo o pedido dela.
A minha voz foge para a tinta que há-de cobrir a parede suja de surro e grafites imbecis onde todos nós vamos escrevendo a nossa própria vida. Tapo com ela o meu próprio surro e a minha própria grafitti que tiveram a época própria dos sonhos e dos ideais frustres que se foram diluindo na voragem e na vertigem dos anos que nos vão comendo a carne e as ideias.
Nessa tinta, contendo a minha foz fugida, ficará a parede da minha imagem pintada, como se espera, de um ser eticamente apresentável como me esforço por ser, mas reprimida será a espontaneidade de pequenas loucuras que foram alimentando a grandeza de uma vida muito cheia, muito boa, mesmo quando muitas coisas más se esforçavam por lhe tirar o encanto. E nessa repressão ficarão dissimuladas também algumas nódoas que não saíram com a benzina que a minha avó usava nas nódoas mais teimosas, tapadas por uma mão de tinta que nos convencionaliza e mergulha na assepsia de uma sociedade cada vez mais idiota e doente de se querer a si própria tão saudável. A tinta é o botão do colarinho que me esconde a naturalidade dos pelos do peito e suporta a gravata do meu descontentamento. Que me reprime o palavrão e me molda a elegância de gestos e de palavras que frequentemente não sinto. A tinta tolhe-me, ainda, o passo que quereria levar-me para as fragas de uma montanha escarpada ou para um areal infinito e bordejado pelo sal dos mares mornos do sul mas, ao invés, me conduz a uma viatura, a uma cadeira de secretária ou a um sofá onde promovo a gordura e canto a imbecilidade de programas de televisão. A tinta compõe, ainda, a imagem bem falante, quiçá nem sempre sincera, decidida e aparentemente segura e de sucesso com que me cubro todos os dias ao levantar-me, depois do banho e me dirijo ao automóvel, mesmo pensando nas nódoas, grafites, fraquezas e ideais desmembrados, convenientemente ocultados pela tinta, temperada com a voz que a Hipatia me pediu para lhe dizer para onde tinha fugido. E é então que prossigo o dia, pintadinho e de fraquezas ocultas, falando aqui, rindo acolá e até as coisas que às vezes me apetece escrever no Espumadamente acabam por se aligeirar na brejeirice de um post pretensamente humorístico, mesmo que razoavelmente conseguido. Como o dos urinóis públicos que tanto fez rir esta gaija do norte e me fez rir a mim de contentamento pela forma como ela se riu (não o linco porque são mais de mil e cem posts e seria uma trabalheira encontrá-lo).
Um dia não deixo fugir a voz. Muito menos para a tinta. Provavelmente até a tinta deitarei fora. Talvez eu aspire por esse dia, talvez tenha medo dele. Porque poderá ser uma forma de libertação que todos nós de alguma forma (este “de alguma forma” fez lembrar o não sei quê Malato, mas juro que foi sem querer…) criamos no nosso imaginário, mas poderá ser também a condenação da minha juventude. Que eu gostaria que fosse eterna mas que eu reparo estar cada vez mais perto de ser piedosamente arrumada numa cómoda qualquer. E, nessa altura, interrogar-me-ei se valerá a pena abrir a gaveta…
7 Comments:
O teu post: http://espumadamente.blogspot.com/2005/03/os-salpicos-da-sanita.html
A minha resposta:
Mais Vozes
Eu explico a demora, Espumante. É muito fácil:
Uma mulher vai à casa de banho e precisa passar pelo espelho. Aproveita, vê o batom; depois vê também as olheiras e que tal está o cabelo. De seguida - enquanto vai falando da vizinha do andar de baixo com a amiga que, necessariamente, a acompanha - espera que uma casa de banho fique vaga. Finalmente lá aparece uma. A mulher entra. Inspecciona a sanita. Vê se há papel. Nunca há. Abre a mala e procura os lenços de papel. Porra! Ficaram no carro. Esvazia a mala para os bolsos para ver se não haverá um lenço de papel perdido. Não há. Esvazia os bolsos para a carteira. Encontra um lenço de papel no fundo do bolso. Volta a pôr a mala pendurada no cabide. Abre as calças, baixa as calças, baixa os collants, baixa a cueca. Faz equilibrismo sobre a sanita, mantendo em média 5 cm entre o corpo e a borda do vaso. Tendo uma bexiga mais pequena do que a masculina (porque há muito mais coisas a ocupar espaço "do lado de dentro") é com alívio que começa a urinar. As pernas começam a ficar cansadas da posição. Finalmente acaba. Usa o lenço de papel. Procura o balde do lixo. Não há balde do lixo. Deita para dentro da sanita o lenço. Levanta a cueca. Baixa novamente a cueca porque o pensinho diário ficou enrugado. Sobe a cueca. Sobe o collant. Sobe as calças. Fecha as calças. Ajeita a roupa toda e ainda dá mais um arranjo ao collant no dedo grande do pé esquerdo. Foda-se! Acabou de rasgar o collant. Tira o verniz da mala e põe no collant para evitar que a malha alastre. Espera que seque o verniz. Calça o sapato. Guarda o verniz. Abre a porta e sai em direcção ao lavatório. Vê o cabelo. Vê o batom. Vê as olheiras. Tira os anéis todos. Guarda-os no bolso. Lava as mãos. Não há papel para secar as mãos, só aqueles secadores horríveis que não secam nada. Grita pela amiga "tens um lenço de papel?". A amiga grita de volta "usei o último agora". Seca as mãos às calças. Enfia os anéis. Volta a arranjar o cabelo e compõe o batom. Sai finalmente do WC linda e espampanante, sem ter molhado a sanita e de mãos bem lavadinhas, porque as mulheres lavam SEMPRE as mãos e é aí que desperdiçam um tempo precioso.
Obrigada, espumante :)
Vale sempre abrir a gaveta, bolas! Para quê deixar mofar a vida, o verbo, o sentir?
Ó homem! Tu solta a voz, solta a tinta, solta o verbo! E não te atrevas a guardar na gaveta nada que não sejam preservativos com a data de validade em dia e uns cajus, não vá o diabo tecê-las. É que já não vivemos sem ti.
Beijinhos, que o regresso te apanhe feliz, de gaveta aberta...
... eu devia linkar este post aos meus posts sobre sermos (termos de ser) todos uns robots - ligamos o programa ou cobrimo-nos com imagens do género bem falante [...], decidida e aparentemente segura e de sucesso, antes ou depois do banho, desligamos ao adormecer, ...
...
Este teu post é/está muito potente.
Vai muito além da alegoria do robot.
É sincero na admissão do logro que cada um de nós vende a si próprio e tenta vender aos outros. E vamos consumindo (e vamo-nos consumindo) (n)esse engano.
...
Beijinhos, a cheirar a diluente,
Sinapse
hipatia
Imagina que deste com o meu post... uma coisa de Março de 2005 :))))
Claro que o fui ler e eu próprio me ri. Tanto quanto me ri com o teu comentário de que também já não me lembrava.
Beijinho amigo
125_azul
Não te importas que junto aos preservativos eu ponha os relógios também, posso?
:))))
sinapse
Por mim não me importo que linques, mas não achas que se fizermos aquilo tudo, sobretudo antes e depois do banho, corremos riscos iminentes?
:)))
Beijinhos potentes para ti. Obrigado pelas tuas palavras
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