A tragédia europeia
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De leitura obrigatória este artigo de Luciano Amaral no DN de hoje:
"Não é possível deixar de sentir uma certa melancolia perante o espectáculo político, económico e social que nos oferecem os grandes países fundadores do chamado "projecto europeu". A França, como recorrentemente o faz, lá saiu à rua para mais um psicodrama violento e folclórico. A Itália confrontou-se com uma escolha eleitoral inútil, de que resultou a ingovernabilidade virtual e um vencedor que será tão incapaz quanto o derrotado de enfrentar os problemas que a afligem. A Alemanha, depois de umas eleições inconclusivas, acabou no pastel da Grande Coligação, onde a timidez reformista da chanceler Merkel esbarra no obstrucionismo do SPD. Como pano de fundo, há a grave e, sobretudo, persistente crise económica e social que os três países atravessam.
Não foi por falta de avisos que não se conseguiu evitar o huis clos actual. Há já alguns anos que muita gente vem avisando para o desastre iminente. E também não será por falta de avisos que não se evitará uma situação ainda pior. Mas infelizmente os últimos anos têm visto a Europa ser progressivamente capturada por uma espécie de ideologia radical, sobre a qual talvez ainda não tenha sido notado o quanto diverge das reais fundações do dito "projecto europeu". Desde o fim da Guerra Fria que, libertos do ónus dos horrores do "socialismo real", os dirigentes europeus decidiram recuperar um discurso de alternativa ao "capitalismo". O "capitalismo", agora qualificado como "selvagem", "neoliberal" ou "globalizado", seria a ideologia da "América", entendida como horizonte onírico negativo, feito de barbárie social, brutalidade e analfabetismo. Na Europa, pelo contrário, existiria um "modelo social", que não deixaria o "mercado" tomar completamente de assalto o conjunto da sociedade. Na Europa, para além disso, imperaria o espírito de concórdia entre os povos, contrariamente à insensibilidade e ferocidade americanas face ao "outro".
Dotados desta boa consciência, os dirigentes europeus permitem-se tomar as acções mais inusitadas. Quando tentam impedir a aquisição de empresas nacionais por empresas de outros países europeus (como no caso da Suez e Gaz de France, para evitar a OPA da italiana Enel sobre a primeira, ou no caso do bloqueio pelo Governo espanhol da OPA da empresa alemã E.On sobre a Endesa) é como se não percebessem a origem do "projecto europeu", a qual foi a liberdade económica. A actual UE começou como CEE, essencialmente uma área de livre-câmbio (ou, para sermos mais precisos, uma união aduaneira), que deveria funcionar como exemplo contra as restrições à liberdade económica tanto do socialismo como do proteccionismo ocidental dos anos 30. Quando insultam a América, a propósito da guerra ao terror, é como se não percebessem que o "projecto europeu" é em larga medida uma criação americana. A CEE nunca existiria sem as pressões americanas a seguir à II Guerra Mundial para que os europeus criassem mecanismos duradouros de cooperação institucional, política e económica que fossem capazes de evitar a repetição do espectáculo suicidário das duas guerras mundiais. Quando insistem de forma maníaca na redacção e imposição de uma (dita) Constituição Europeia, que os povos europeus não quiseram e não votaram, ou quando votaram (como em França e na Holanda) recusaram, é como se não percebessem que a UE é uma união de Estados democráticos nacionais, que só podem dar saltos qualitativos como aquele através de decisões de democraticidade inquestionável.
Eles não percebem que, ao mesmo tempo que pretendem apresentar a Europa como um bloco alternativo à América e ao "neoliberalismo selvagem", estão precisamente a destruir o projecto político europeu. A Europa, para ser a tal "Europa unida" que nominalmente tanto delicia os seus responsáveis, tem de ser um espaço democrático marcado pela liberdade económica e uma ligação significativa à América. Sem a existência de uma dimensão institucional mínima de onde as rivalidades nacionais desapareceram (ou onde atingiram um determinado consenso acerca da área e do grau nos quais não se fazem sentir) e sem uma presença americana mínima, o "projecto europeu" tal como o conhecemos não existe. Pode até ser que queiramos que deixe de existir nesses termos. Mas então convém perceber que se estará a fazer algo de diferente daquilo que se quis fazer a partir de 1945. E convém também perceber que, se se quer fazer agora algo de diferente daquilo que antes se quis fazer, as condições do consenso atingido até agora também mudam, e que, se as condições do consenso mudam, então os diferentes países vão começar a quebrar (como já estão a fazer) as regras do consenso anterior.
Não é realmente bonito o espectáculo desta Europa refém de uma clique radical que, dizendo que o quer continuar e aprofundar, pouco mais faz do que destruir o projecto pacientemente construído nos últimos 50 anos. Os resultados disso já são maus. Mas não nos assustemos, porque podem vir ainda a ser piores."
De leitura obrigatória este artigo de Luciano Amaral no DN de hoje:
"Não é possível deixar de sentir uma certa melancolia perante o espectáculo político, económico e social que nos oferecem os grandes países fundadores do chamado "projecto europeu". A França, como recorrentemente o faz, lá saiu à rua para mais um psicodrama violento e folclórico. A Itália confrontou-se com uma escolha eleitoral inútil, de que resultou a ingovernabilidade virtual e um vencedor que será tão incapaz quanto o derrotado de enfrentar os problemas que a afligem. A Alemanha, depois de umas eleições inconclusivas, acabou no pastel da Grande Coligação, onde a timidez reformista da chanceler Merkel esbarra no obstrucionismo do SPD. Como pano de fundo, há a grave e, sobretudo, persistente crise económica e social que os três países atravessam.
Não foi por falta de avisos que não se conseguiu evitar o huis clos actual. Há já alguns anos que muita gente vem avisando para o desastre iminente. E também não será por falta de avisos que não se evitará uma situação ainda pior. Mas infelizmente os últimos anos têm visto a Europa ser progressivamente capturada por uma espécie de ideologia radical, sobre a qual talvez ainda não tenha sido notado o quanto diverge das reais fundações do dito "projecto europeu". Desde o fim da Guerra Fria que, libertos do ónus dos horrores do "socialismo real", os dirigentes europeus decidiram recuperar um discurso de alternativa ao "capitalismo". O "capitalismo", agora qualificado como "selvagem", "neoliberal" ou "globalizado", seria a ideologia da "América", entendida como horizonte onírico negativo, feito de barbárie social, brutalidade e analfabetismo. Na Europa, pelo contrário, existiria um "modelo social", que não deixaria o "mercado" tomar completamente de assalto o conjunto da sociedade. Na Europa, para além disso, imperaria o espírito de concórdia entre os povos, contrariamente à insensibilidade e ferocidade americanas face ao "outro".
Dotados desta boa consciência, os dirigentes europeus permitem-se tomar as acções mais inusitadas. Quando tentam impedir a aquisição de empresas nacionais por empresas de outros países europeus (como no caso da Suez e Gaz de France, para evitar a OPA da italiana Enel sobre a primeira, ou no caso do bloqueio pelo Governo espanhol da OPA da empresa alemã E.On sobre a Endesa) é como se não percebessem a origem do "projecto europeu", a qual foi a liberdade económica. A actual UE começou como CEE, essencialmente uma área de livre-câmbio (ou, para sermos mais precisos, uma união aduaneira), que deveria funcionar como exemplo contra as restrições à liberdade económica tanto do socialismo como do proteccionismo ocidental dos anos 30. Quando insultam a América, a propósito da guerra ao terror, é como se não percebessem que o "projecto europeu" é em larga medida uma criação americana. A CEE nunca existiria sem as pressões americanas a seguir à II Guerra Mundial para que os europeus criassem mecanismos duradouros de cooperação institucional, política e económica que fossem capazes de evitar a repetição do espectáculo suicidário das duas guerras mundiais. Quando insistem de forma maníaca na redacção e imposição de uma (dita) Constituição Europeia, que os povos europeus não quiseram e não votaram, ou quando votaram (como em França e na Holanda) recusaram, é como se não percebessem que a UE é uma união de Estados democráticos nacionais, que só podem dar saltos qualitativos como aquele através de decisões de democraticidade inquestionável.
Eles não percebem que, ao mesmo tempo que pretendem apresentar a Europa como um bloco alternativo à América e ao "neoliberalismo selvagem", estão precisamente a destruir o projecto político europeu. A Europa, para ser a tal "Europa unida" que nominalmente tanto delicia os seus responsáveis, tem de ser um espaço democrático marcado pela liberdade económica e uma ligação significativa à América. Sem a existência de uma dimensão institucional mínima de onde as rivalidades nacionais desapareceram (ou onde atingiram um determinado consenso acerca da área e do grau nos quais não se fazem sentir) e sem uma presença americana mínima, o "projecto europeu" tal como o conhecemos não existe. Pode até ser que queiramos que deixe de existir nesses termos. Mas então convém perceber que se estará a fazer algo de diferente daquilo que se quis fazer a partir de 1945. E convém também perceber que, se se quer fazer agora algo de diferente daquilo que antes se quis fazer, as condições do consenso atingido até agora também mudam, e que, se as condições do consenso mudam, então os diferentes países vão começar a quebrar (como já estão a fazer) as regras do consenso anterior.
Não é realmente bonito o espectáculo desta Europa refém de uma clique radical que, dizendo que o quer continuar e aprofundar, pouco mais faz do que destruir o projecto pacientemente construído nos últimos 50 anos. Os resultados disso já são maus. Mas não nos assustemos, porque podem vir ainda a ser piores."
Luciano Amaral escreve também n'O Insurgente
2 Comments:
Boa Páscoa amigo da Espuma da mente!
Boa Páscoa para si também. Tem andado arredado. E para quando o tal do almoço?
Abraço
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