Reconciliação
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A reconciliação é um estado de alma. Um estado de alma bom. E em dias azedos, uma ida ao Jardim da Estrela tem a suprema faculdade de nos reconciliar com a vida. O jardim está bonito, as árvores de grande porte e folha persistente estão frondosas, muito verdes e cheias de sombra aprazível que vertem na relva, muito verde também, e nos bancos de jardim, reparados de novo, envernizados, muito lisboetas e confortáveis. Os patos estão calmos e gordos, a água dos lagos está limpa, os pombos arrulham em jogos de amor sem hora marcada nem "room service" e até os pardais perderam o medo e vêm comer à mão de idosos que se habituaram a gostar mais deles do que dos homens. As pessoas circulam em passeio despreocupado, umas, ou sentam-se preguiçosamente nos bancos. Os mais velhos lendo a Bola, os mais novos falando ao telemóvel. Mas todos, surpreendemente, em voz baixa. Por isso se ouvem os pombos e os rodados dos eléctricos a passar em frente à Basílica. João de Deus mantém-se imperturbável a olhar em direcção ao rio, indiferente ao facto de quase ninguém olhar para ele. Mas lá está, guardião do seu pequeno território.
Surpreendente e inexplicavelmente não há obras. Aquelas obras que me habituei a ver dezenas de vezes… acabaram. Tudo está limpo, arrumado, varrido, verde, deliciosamente calmo e esmagadoramente bonito. Não – não estou a ser irónico. Não há obras no Jardim da Estrela e o jardim está lindo.
Curiosamente há mais mulheres que homens. Muitas são idosas e trocam conversas cúmplices com os companheiros, mais idosos ainda. Outras são raparigas da minha idade (!…) ou, perigosamente, dez anos mais novas, sentadas nos bancos com displicência e uma aparente indiferença pelo mundo, embora seja certo que prescrutam o "ecossistema" circundante por detrás de uns convenientes óculos escuros. Quase todas bonitas. Dentro de um pequeno quiosque (Biblioteca do Jardim) dormita um velhote, gordo e triste, com os braços apoiados no parapeito onde uma pequena tabuleta tem escrito, à mão, "Novidades". As "novidades" são National Geographic dos anos 90, Selecções do Reader’s muito antigas e muitas, muitas revistas femininas, todas elas datadas e sebentas. Ainda parei a dar uma vista de olhos e tentou-me a possibilidade de um pequeno diálogo, de ocasião como as revistas, com o idoso. Mas os olhos dele lançaram-me uma adocicada súplica para não o perturbar – não devia estar com paciência para conversas, cansado que parecia estar da vida.
Ainda hoje não consigo perceber porque é que não vou mais vezes ao jardim depois de almoçar e acomodo tantos azedumes. Com o jardim ali tão perto…
12 Comments:
Espumante
Pela descrição quase parece um oásis no meio do deserto em que este país parece querer transformar-se. Há anos que não vou ao Jardim da Estrela. Ainda me lembro de a Feira Popular ter sido lá (não me lembro se a Marina Tavares Dias o refere nos seus "Lisboa Desconhecida").
Beijinhos
Que texto tão bonito... mas tem uma pontinha de melancolia. Será o Outono a aproximar-se?
Jogos de amor sem hora marcada nem room service? Ó Espumante isto não vai muito bem com o texto :)
Estou a brincar, o texto está muito bonito
Lindo! Lindo! Lindo! Não sei se a paz de alma vem de dentro para fora, se de fora para dentro mas para o caso importa dizer que este teu texto também tem o tal dom de nos reconciliar com o mundo. Pelo menos no bocadinho que levamos a ler.
Acho que até vou reler...
beijinho para ti!
Belo texto! Sou vizinho do jardim, mas vou lá menos vezes do que devia (ou posso...). Um abraço.
Laura Lara
O JE é um local muito aprazível tenho a sorte de trabalhar ali perto e almoçar nos arredores. às vzes calha lá passar...
:)
beijinhos para ti
T-shelf
És uma querida :))) O "meu" outono já me ronda há um tempito. Enquanto não for inverno está tudo bem:))
E não. Não há melancolia nenhuma. Só uns dias em que andamos um pouquinho mais azedos.
Beijinho para ti
Anónimo/a
E porque não???
:)
Madalena
És outra querida, como a TI :))
Torquato da Luz
Eu moro muito mais longe... numa zona de que gosto muito. Mas confesso que os quase 10 anos em que tenho este contacto (da janela do meu gabinete vejo o jardim...) me trouxeram uma habituação confortável a um dos sítios de Lisboa de que mais gosto.
NOTA : Achei graça até que hoje, como me deu em escrever esta nota sobre o Jardim, fiz uma busca no Google. Encontrei um site de um fotógrafo com fotos lindíssimas e uma delas mosra claramente o meu local de trabalho e... surpresa... o meu carro estacionado mesmo em frente à Basílica. O fotógrafo é um tal Álvaro Ataíde e a colecção de fotos é de Dezembro de 2002.
Big Brother is watching me...
:)
Há 3 semanas atrás atravessei-o, a passo de meia-corrida porque alguém de quem sou muito amiga esperava-me para almoço, do lado de lá.
Já terão passado uns 6 ou 7 anos que não ia lá. E o que me soube mesmo bem foi aquele cheiro a "verde", a natureza e a paz que me invadiu as narinas, os neurónios e a alma, sem ter que fazer qualquer esforço para tal.
E para o estômago tive o tal almoço que foi muito agradável!
Continuas a escrever bem...muito bem! - Gota
Gota
És uma querida :)
E eu não escrevo bem, tu é que lês bem
beijinhos
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