quarta-feira, dezembro 22, 2004

Um (des) conto de Natal



Isto anda fraco... não acontece nada. Isto é, há “acontecências” avulso, umas esperadas, outras nem por isso, mas todas incapazes de fazer soltar o cão para o fulminante, que é uma forma militarona de dizer que ando com falta de engenho para aqui deixar alguma coisa que mereça ser lida. Há o recurso aos poemas, eu sei, vai-se ao Google e tal, search em quadros célebres ou lyrics de alguém que gostemos, selecciona-se uma foto ou, em última análise, falamos do Bagão ou do Santana. Mas nem isso me apetece. Deve ser o espírito natalício a inundar-me as entranhas que faz com que nem me apeteça seleccionar fotos nem dizer mal de alguém. Os dias têm passado fastidiosos, apesar do sol e das iluminações natalícias. Uma vez por outra apetece-me escrever uma coisinha assim tipo conto de Natal, sei lá, homem cinzentão, barba de dias, casaco coçado, fim de uma tarde triste e fria e o homem, cenho carregado com a desilusão de coisas e gentes, deambula por Lisboa, senta-se num banco de jardim e adormece. Quando acorda, repara que o dia está luminoso, a cidade está limpa. Não há carros nos passeios e as pessoas circulam ordeiramente, bem dispostas, de ar escovado, não há “graffiti” nem motoristas de taxi malcriados, as esplanadas estão repletas de gente contente a ser atendida por empregados simpáticos e eficientes. O homem levanta-se, vê um cinema e resolve entrar. Não lhe importa que filme vai ver. Só sabe que se sente bem e lhe apetece ver um filme, um filme qualquer que ligue com o estranho bem estar que sente. Entra e vê um filme de que nem sabe o nome... só sabe que, de repente, o filme lhe mostra imagens de sítios que conhece e de gente que ele conhece também. Sítios lindos e tão diferentes como desertos, florestas densas, grandes cidades, monumentos belíssimos, montanhas de neve e mares de azuis de que ele já nem se lembrava. E viu gente que conhecia... estranhou o filme, mas o prazer e a paz eram grandes pelo que nem se quedou a pensar nas razões por que o filme lhe dispunha todas aquelas imagens familiares e, sobretudo, tão gratas. E essa gente que conhecia era-lhe mesmo chegada. Amigos, vivos e falecidos, mulheres lindíssimas que conhecera, viu os filhos, ora pequenos a brincarem no jardim ora já grandes a conversar...viu pais, tios e mesmo parentes mais afastados numa sequência que mais lhe parecia uma retrospectiva cuidada e cronologicamente mostrada. O filme acabou abruptamente e o homem saiu do cinema, caminhou pela cidade, chegou ao Tejo. As águas do rio estavam limpíssimas e muito azuis, tão azuis que algumas crianças brincavam na margem e miravam-se na sua superfície, vendo o seu próprio reflexo. O homem aproximou-se então e quis ver-se reflectido também. Mas, quando olhou, em vez da sua imagem reflectida, o que viu foi uma carrinha do INEM... meia dúzia de mirones a olharem um corpo inerte num banco de jardim, enquanto os paramédicos abriam as portas da ambulância e falavam ao telemóvel. Reparou então que era ele próprio... inerte naquele banco de jardim. Confuso, olhou para o céu e de um lado viu uma luz muito brilhante que parecia chamá-lo. Do outro lado viu terra. Montes e vales, florestas, mares e até conseguiu descortinar pássaros esvoaçando. Por um momento vacilou...a luz era muito mais bonita e apelativa mas qualquer coisa falou mais alto. O homem, resoluto, caminhou firmemente para a terra. A terra e a vida que ele conhecera e amara com paixão e alguma correria. E foi com a mesma resolução e firmeza que à terra voltou por achar ter sido dela que viera. Ainda olhou para trás, a tempo de “se” ver a ser depositado na ambulância...

Este seria o tal conto de Natal, que podia ser bonito se eu tivesse jeito e uma pontinha de espaço para acreditar em luzes brilhantes.

11 Comments:

At 11:05 da tarde, Blogger Blogger disse...

Mas as luzes brilham mesmo! Não é uma questão de acreditar, apenas de ver...
Essa nem São Tomé se atreveria!

 
At 11:31 da tarde, Anonymous Anónimo disse...

Mas o conto não é (des), é mesmo conto. E deixe-me dizer-lhe que está lindíssimo. Eu tinha seguido a luz, mas isso não tira beleza ao conto. Parabens!
Leonor

 
At 12:32 da manhã, Blogger Francisca disse...

Fiquei rendida ao simbolismo.
No solstício de inverno a determinação de apostar na terra e, portanto, na vida.
E a luz apagada por falta de espaço...:)
Magnífico!

 
At 7:42 da manhã, Blogger Passada disse...

Não te irei sugerir uma volta por monsanto por razões óbvias, mas a arrábida sempre me promoveu grandes sensações de espaço e luz. quem sabe. agora quem assim escreve sem ter nada para dizer, é de respeitar não a capacidade mas a criatividade. Agora tu não precisas de ir ao google, tu tens um recurso precioso. Podes contar aquela estória de como se pode perder um barco para o mar e vê-lo de volta ou de como tens os filhos mais fofos deste mundo.

 
At 8:42 da tarde, Blogger Nelson Reprezas disse...

Res de Res
Mas eu não disse que as luzes não brilham. Aliás T.A. Edison deu corpo e funcionalidade a esse brilho (tou a ser mauzinho, eu sei...) :)))) Vejo as luzes, gosto de luz, mas pertenço à terra e essa nem S. Tomé me obriga a ver. Está lá e é dela que eu venho. Bom Natal :)))

 
At 8:47 da tarde, Blogger Nelson Reprezas disse...

Leonor
Obrigado pelo comentário. Não deixe de seguir a luz, se sente bem. Um bom Natal cheio de luz. Sério, sem ironias :))

 
At 8:56 da tarde, Blogger Nelson Reprezas disse...

Francisca
Gostei muito do seu comentário e fiquei, claro, desvanecido :))"Aquilo" não era um conto, eu não sei escrever contos. Comecei... e fui por ali fora. reconheço que consegui algum simbolismo que a Francisca, com o brilho habitual, notou. Quanto ao espaço, eu tenho wide open spaces dentro de mim, de há muito, que os preencho com o que a vida me dá (e é tanto...), com aquilo que gosto e com aquilo que compreendo. Uma vez mais, obrigado pelas suas gentis palavras e um Natal muito bom, com mutos doces de abóbora e isso... :)))))

 
At 8:59 da tarde, Blogger Nelson Reprezas disse...

mmicr
Obrigado "passada" :))) essa do barco perdido um dia sai... é uma boa dica.
Beijos grandes :))

 
At 10:48 da tarde, Anonymous Anónimo disse...

O Espumante azedou :)) Mas é um azedo bonito. Bom Natal
IL-

 
At 11:48 da tarde, Anonymous Anónimo disse...

Se não saber escrever contos é escrever assim..... apetece-me dizer...c'um carago! mas não sou do norte. Sou alfacinha de gema. :)
Uma caixinha cheia de elogios com um grande laço vermelho (ou prefere verde?)seria um óptimo presente virtual de Natal. Mas hoje não me sinto inspirada para fazer elogios à arte de bem escrever do espumante!
Assim, aqui fica apenas um desejo de UM FELIZ NATAL e, por favor, não abafe os seus... open spaces!
- Gota

 
At 1:05 da manhã, Blogger Nelson Reprezas disse...

Gota

Que é lá isso de precisar de inspiração para me comentar? :)
Obrigado pelas palavras amáveis e um beijinho goticular de bom Natal :)

 

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