Um (des) conto de Natal
Isto anda fraco... não acontece nada. Isto é, há “acontecências” avulso, umas esperadas, outras nem por isso, mas todas incapazes de fazer soltar o cão para o fulminante, que é uma forma militarona de dizer que ando com falta de engenho para aqui deixar alguma coisa que mereça ser lida. Há o recurso aos poemas, eu sei, vai-se ao Google e tal, search em quadros célebres ou lyrics de alguém que gostemos, selecciona-se uma foto ou, em última análise, falamos do Bagão ou do Santana. Mas nem isso me apetece. Deve ser o espírito natalício a inundar-me as entranhas que faz com que nem me apeteça seleccionar fotos nem dizer mal de alguém. Os dias têm passado fastidiosos, apesar do sol e das iluminações natalícias. Uma vez por outra apetece-me escrever uma coisinha assim tipo conto de Natal, sei lá, homem cinzentão, barba de dias, casaco coçado, fim de uma tarde triste e fria e o homem, cenho carregado com a desilusão de coisas e gentes, deambula por Lisboa, senta-se num banco de jardim e adormece. Quando acorda, repara que o dia está luminoso, a cidade está limpa. Não há carros nos passeios e as pessoas circulam ordeiramente, bem dispostas, de ar escovado, não há “graffiti” nem motoristas de taxi malcriados, as esplanadas estão repletas de gente contente a ser atendida por empregados simpáticos e eficientes. O homem levanta-se, vê um cinema e resolve entrar. Não lhe importa que filme vai ver. Só sabe que se sente bem e lhe apetece ver um filme, um filme qualquer que ligue com o estranho bem estar que sente. Entra e vê um filme de que nem sabe o nome... só sabe que, de repente, o filme lhe mostra imagens de sítios que conhece e de gente que ele conhece também. Sítios lindos e tão diferentes como desertos, florestas densas, grandes cidades, monumentos belíssimos, montanhas de neve e mares de azuis de que ele já nem se lembrava. E viu gente que conhecia... estranhou o filme, mas o prazer e a paz eram grandes pelo que nem se quedou a pensar nas razões por que o filme lhe dispunha todas aquelas imagens familiares e, sobretudo, tão gratas. E essa gente que conhecia era-lhe mesmo chegada. Amigos, vivos e falecidos, mulheres lindíssimas que conhecera, viu os filhos, ora pequenos a brincarem no jardim ora já grandes a conversar...viu pais, tios e mesmo parentes mais afastados numa sequência que mais lhe parecia uma retrospectiva cuidada e cronologicamente mostrada. O filme acabou abruptamente e o homem saiu do cinema, caminhou pela cidade, chegou ao Tejo. As águas do rio estavam limpíssimas e muito azuis, tão azuis que algumas crianças brincavam na margem e miravam-se na sua superfície, vendo o seu próprio reflexo. O homem aproximou-se então e quis ver-se reflectido também. Mas, quando olhou, em vez da sua imagem reflectida, o que viu foi uma carrinha do INEM... meia dúzia de mirones a olharem um corpo inerte num banco de jardim, enquanto os paramédicos abriam as portas da ambulância e falavam ao telemóvel. Reparou então que era ele próprio... inerte naquele banco de jardim. Confuso, olhou para o céu e de um lado viu uma luz muito brilhante que parecia chamá-lo. Do outro lado viu terra. Montes e vales, florestas, mares e até conseguiu descortinar pássaros esvoaçando. Por um momento vacilou...a luz era muito mais bonita e apelativa mas qualquer coisa falou mais alto. O homem, resoluto, caminhou firmemente para a terra. A terra e a vida que ele conhecera e amara com paixão e alguma correria. E foi com a mesma resolução e firmeza que à terra voltou por achar ter sido dela que viera. Ainda olhou para trás, a tempo de “se” ver a ser depositado na ambulância...
Este seria o tal conto de Natal, que podia ser bonito se eu tivesse jeito e uma pontinha de espaço para acreditar em luzes brilhantes.
11 Comments:
Mas as luzes brilham mesmo! Não é uma questão de acreditar, apenas de ver...
Essa nem São Tomé se atreveria!
Mas o conto não é (des), é mesmo conto. E deixe-me dizer-lhe que está lindíssimo. Eu tinha seguido a luz, mas isso não tira beleza ao conto. Parabens!
Leonor
Fiquei rendida ao simbolismo.
No solstício de inverno a determinação de apostar na terra e, portanto, na vida.
E a luz apagada por falta de espaço...:)
Magnífico!
Não te irei sugerir uma volta por monsanto por razões óbvias, mas a arrábida sempre me promoveu grandes sensações de espaço e luz. quem sabe. agora quem assim escreve sem ter nada para dizer, é de respeitar não a capacidade mas a criatividade. Agora tu não precisas de ir ao google, tu tens um recurso precioso. Podes contar aquela estória de como se pode perder um barco para o mar e vê-lo de volta ou de como tens os filhos mais fofos deste mundo.
Res de Res
Mas eu não disse que as luzes não brilham. Aliás T.A. Edison deu corpo e funcionalidade a esse brilho (tou a ser mauzinho, eu sei...) :)))) Vejo as luzes, gosto de luz, mas pertenço à terra e essa nem S. Tomé me obriga a ver. Está lá e é dela que eu venho. Bom Natal :)))
Leonor
Obrigado pelo comentário. Não deixe de seguir a luz, se sente bem. Um bom Natal cheio de luz. Sério, sem ironias :))
Francisca
Gostei muito do seu comentário e fiquei, claro, desvanecido :))"Aquilo" não era um conto, eu não sei escrever contos. Comecei... e fui por ali fora. reconheço que consegui algum simbolismo que a Francisca, com o brilho habitual, notou. Quanto ao espaço, eu tenho wide open spaces dentro de mim, de há muito, que os preencho com o que a vida me dá (e é tanto...), com aquilo que gosto e com aquilo que compreendo. Uma vez mais, obrigado pelas suas gentis palavras e um Natal muito bom, com mutos doces de abóbora e isso... :)))))
mmicr
Obrigado "passada" :))) essa do barco perdido um dia sai... é uma boa dica.
Beijos grandes :))
O Espumante azedou :)) Mas é um azedo bonito. Bom Natal
IL-
Se não saber escrever contos é escrever assim..... apetece-me dizer...c'um carago! mas não sou do norte. Sou alfacinha de gema. :)
Uma caixinha cheia de elogios com um grande laço vermelho (ou prefere verde?)seria um óptimo presente virtual de Natal. Mas hoje não me sinto inspirada para fazer elogios à arte de bem escrever do espumante!
Assim, aqui fica apenas um desejo de UM FELIZ NATAL e, por favor, não abafe os seus... open spaces!
- Gota
Gota
Que é lá isso de precisar de inspiração para me comentar? :)
Obrigado pelas palavras amáveis e um beijinho goticular de bom Natal :)
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