Choldra
Os factos:
Estação do Metro do Campo Grande, 4 da tarde de Outubro do ano passado.. A Jessica e a Patrícia, ambas de 18 anos, tomaram o seu lugar numa das carruagens. Entram dois homens ( ? ) , com ar de rufia, soltando impropérios e obscenidades, insultando o Bush, os americanos, os portugueses que não ligavam aos emigrantes e os passageiros da carruagem. Um deles, olhando de frente para a Jessica, diz-lhe para lhe chupar “ali”, enquanto segurava lá o que quer que fosse que tinha entre as pernas. Perante a cena, a Jessica e a Patrícia levantam-se do banco que ocupavam e fizeram menção de mudar de sítio. Ao passar pelos energúmenos, um deles agarra-a, a Jessica defende-se e a besta, acto contínuo, dá-lhe um soco na boca. O comboio começara, entretanto a andar. Perante a passividade de toda a gente, uma senhora idosa levanta-se e acciona o alarme após o que a composição, de imediato, parou, abrindo as portas. No meio da confusão instalada, aparece um jovem vestido à paisana que se identifica como polícia e consegue imobilizar uma das feras enquanto a outra, a que agredira, foge e ninguém mais a viu. O polícia leva o preso e as duas colegas para a esquadra da PSP no Marquês de Pombal. A Jessica telefona ao pai que, de imediato, faz os cerca de 40 quilómetros que o separam da cena e se junta a ela. Queixa apresentada e assinada, aliás fortemente sugerida pela polícia que “até conheciam o gajo, morava em Loures e era fácil apanhá-lo", a Jessica é informada de que deveria deslocar-se ao Instituto de Medicina Legal para obter um relatório médico. Quando o pai da Jessica se dispôs a ir ao IML, é informado que “só na Segunda feira”, porque era Sexta e o IML estaria fechado. Refreando o impulso de dizer à Policia que, pelo visto, os cidadãos só “deveriam” ser agredidos aos dias úteis, o pai da Jessica resolveu ir para casa, desinfectar o lábio cortado da filha e, na Segunda Feira lá estavam os dois, pai e filha no IML. Atendidos por um médico de meia idade, ouviram uma longa prelecção sobre o amor entre os homens e que o perdão era essencial para se atingir o reino dos céus, Cerca de quarenta e cinco minutos depois (sem qualquer exagero) e quando o fervor religioso do médico era já do devido conhecimento da agredida e do pai (já agredido, também, com tanto surrealismo), o pai lembrou o médico que o melhor seria fazer o tal exame médico. Pelo andar da carruagem, quando se acabasse a doutrina, as equimoses teriam passado.
Setembro de 2004:
A Jessica recebe uma notificação para se apresentar na PSP de Cascais, por carta registada. Civicamente, deslocou-se à PSP, é recebida por um agente da autoridade que pega no papel. Olha-o, remira-o, devolve-o e diz com ar neutro: _ Ah, “isto” é em Carcavelos (sic). A Jessica regressa a casa, conta a cena e o pai, que não é jurista, nem policia e tem pouca ou nenhuma experiência de tribunais, diligências e correlativos, diz à Jessica: - Filha, esquece isso.
Duas semanas depois, a Jessica recebe uma notificação do Tribunal de Menores e de Família e da Comarca de Carcavelos ( e atenção às conjunções que, no caso vertente, são importantes), dizendo que ela tinha sido condenada a uma multa de 2 Ucs, € 178, para pagar em cinco dias, podendo ser detida, não o fazendo... blá blá blá por ter faltado a uma diligência.
Moral da história:
- A Jessica leva um murro há cerca de um ano que lhe abriu o lábio inferior, chorou toda a noite de raiva e o pai da Jessica andou quinze dias com vontade de matar toda a gente;
- A Jessica foi fazer um exame médico três dias depois, quando as equimoses, embora ainda perfeitamente visíveis, estavam já claramente atenuadas;
- O exame médico, que levou dois minutos, foi precedido de um compulsivo processo de evangelização das vontades por um médico claramente inadequado para o efeito e a necessitar urgentemente de ajuda profissional, que é uma forma elegante de se dizer que o homem deveria consultar, sem demora, um psiquiatra;
- A Jessica é notificada UM ano depois para ir à PSP de Cascais, cumpre civicamente o que lhe é imposto, é recebida por um polícia idiota e claramente impreparado que lhe deveria ter explicado profissional e exactamente do que se tratava em vez de ter despachado a jovem com um seco e rápido “isto é em Carcavelos”;
- O pai da Jessica vai pagar € 178 porque se a policia não é capaz de encontrar um elemento perigoso da sociedade, mesmo conhecendo-o muito bem e sabendo que ele mora em Loures, está, com certeza, em condições de deter a Jessica, como reza a notificação. Sobretudo porque sabem onde ela mora e porque ela não anda a dar socos nas pessoas que viajam de Metro.
Independentemente da revolta que tudo isto provoca, gera-se um inevitável sentimento de impotência pela forma como estes factos acontecem e a convicção, cada vez mais forte, que a choldra que Eça descrevia e o rei D. Carlos se queixava continua de saúde e recomenda-se. Ser prior nesta freguesia é obra. Mas ser ovelha deste rebanho é, mais do que a vergonha que isso nos suscita, perigoso. E, ainda por cima, caro. Senão... experimentem levar um murro no Metro. E depois, contem.
2 Comments:
o ciclo vicioso das incompetências, sem prejuízo de toda a descredibilização que mais uma cena socialmente cívica nos apresenta. Para que raio existe uma polícia se dela ninguém pede responsabilidades? não quero desanimar as hostes mas este é um legado por nós deixado neste país tão bonito que é moçambique. E os que aqui se apresentam pós o "vinte e zinco" (último do Mia Couto)beberam toda essa burocrática e retrógada forma de gerir a sociedade. Não é só vergonhoso, é puro atraso com laivos de grandeza. Somente. Vamos falar de coisas positivas? a colocação dos professores por exemplo.
Não há Negá-lo: quem sai aos seus não degenera! Se não soubesse, de livros, que o Brasil fora civilizado por Portugal, essa sua postagem ter-me-ia convencido! E olha que vocês ai nem pagam o ISM: Imposto Sobre Multas, hein? Flávio
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