Maus tempos
Maputo - Inundação do ano passado. Av 25 de setembro, cruzamento do Scala e do Continental. À esquerda a Casa Coimbra e à direita o BIM:
[1299]
Uma vez, em Maputo, não há muitos anos, rebentou uma depressão tropical em que o Índico, aliás, é fértil. Uma chuva torrencial durante cerca de doze horas seguidas e ventos ciclónicos a roçar os 200 km/hora, destruíram a cidade, arrancaram árvores, gente morreu nos subúrbios e a cidade ficou privada de energia e água durante uma semana.
Como tinha barco, ocorreu-me levar a família para o Hotel da Inhaca, já que ali haveria água e luz de gerador sem problemas e lá atravessei as cerca de vinte milhas náuticas da baía por entre destroços de palhotas arrastadas pelo Maputo, Tembe e Umbelúzi, animais domésticos e bravios mortos, cadáveres de moradores nas bacias dos rios, uma visão trágica, enfim, da força dos elementos da natureza. Nos dias seguintes à tempestade, incorporei-me num grupo de seis barcos e subimos o rio Maputo e para aqueles que conheçam a zona, posso dizer que passei de barco sobre a ponte de Salamanga, na estrada para a Ponta do Ouro, só para que se perceba o nível das águas. Salvámos um considerável número de pessoas que se manteve empoleirada em copas de árvores, alguns durante dois dias, e no fim de tudo tive uma sensação reconfortante de ter ajudado. Recebi até um prémio de muito significado para mim, um diploma de honra do governo da Frelimo e um prémio que consistia num volume de cigarros Nilos, uma lata de cera, um pacote de bolachas da Ceres, 5 kg de arroz, 5 kg de açúcar, 5 kg de amendoim e uma capulana. Foi uma cerimónia simples após a qual eu e os outros expatriados que havíamos ajudado ao rescaldo da tragédia doámos o prémio, como era natural. Fiquei apenas com a capulana, como recordação.
Tudo isto a propósito de quê? A propósito de achar que vivo num país que goza de um dos melhores climas do mundo, com frios amenos e calores episódicos, onde o sol brilha quase todo o ano, onde a chuva cai normalmente em regime de aguaceiros cuja continuidade não ultrapassa os cinco minutos. Mau grado a mariquice nacional do casaquinho de malha e da corrente de ar e das vezes que oiço está um frio horrível cada vez que o termómetro baixa dos vinte graus, penso ser consensual que o nosso clima é benigno. E, todavia, de cada vez que cai um aguaceiro mais intenso, é o caos. Em Lisboa, nem se fala. Cinco minutos de chuva são suficientes para as televisões noticiarem as centenas de chamadas de bombeiros. E um pouco por todo o país, como ainda agora aconteceu, as inundações sucedem-se, as estradas ficam cortadas, os comboios param, as casas desabam, as rotundas desaparecem (esta parte não faz assim grande diferença, podiam desaparecer umas quantas, de vez) e instala-se um clima de pânico. Mais. De revolta. Toda a gente vem para a televisão zangadíssima, não sei bem com quem, julgo que com o governo, as câmaras, com os políticos, instigados por repórteres que fazem as perguntas mais idiotas que é possível imaginar. A parte trágica da coisa é normalmente ilustrada por umas quantas mulheres a chorar e homens (muitos deles jovens com mais de 80 kg e um metro e oitenta) com as cabeças entre as mãos a dizer que a vida deles está desgraçada. Porque, na maior parte dos casos perderam o frigorífico, o micro-ondas e a mesinha de cabeceira.
Eu não percebo muito, nem muito nem pouco, de meteorologia mas parece-me que a facilidade com que estas inundações acontecem tem a ver, apenas, com a mais desregrada forma de vivermos. Não há ordenamento de território, há construção clandestina, as casas estão todas umas por cima das outras, as câmaras aprovam ou reprovam segundo critérios à nossa maneira, é a corrupção, é a nossa reconhecida falta de civismo, é a educação, é a cultura, é tudo, mas tudo a contribuir para que dez minutos de chuva causem tamanho caos.
Quedo-me a pensar que se um dia, por absurdo, tivermos um Katrina em Portugal, ou o tal Domoína que varreu Maputo, o que será deste país de muros, marquises, arranjos, acrescentos, desníveis, valetas entupidas, leitos de cheia com construção permanente, casas, casinha e casebres ao longo das estradas, misturadas com caixotes de apartamentos, esgotos que não há, asfaltagens que ficam para depois, obras, muitas obras, buracos, valas, bandeirinhas vermelhas e tabuletas a dizer “trabalhos” em qualquer parte do território nacional e sempre no nosso horizonte visual, se tivermos, dizia eu, uma tempestade a sério, o que será deste país? E a culpa é de quem?
5 Comments:
Não há notícia de que Portugal tenha sido atingido, neste sábado, por algum desastre natural, mas na zona Centro choveu tanto que a água conseguiu destruir a Linha do Norte. Estamos a falar daquele que é o principal eixo ferroviário do país, ligando Lisboa e Porto por duas vias. É uma linha que tem sido alvo de investimentos de milhões e milhões de euros, com derrapagens financeiras sobre derrapagens financeiras, para além das derrapagens no tempo de execução das obras. Pelo que vimos na televisão, junto ao túnel de Fátima (na imagem), a terra que estava por baixo dos carris foi levada pela força da água. Aparentemente, a água acumulou-se até que encontrou facilidades e acabou por passar debaixo das duas linhas. A circulação ferroviária está suspensa. Agora, ocorre perguntar: o dinheiro dos contribuintes destinado à modernização da Linha do Norte foi mesmo bem aplicado?... Isto é, as obras foram bem feitas?...
o leão da estrela
Na minha qualidade de lagarto militante folgo em ter sido visitado por um blog tão ilustre como o seu. Agora sei onde ir buscar noticias sobre o Sporting
:)
chuvamiudinha
Obrigado e um beijinho
Ainda bem que guardaste a capulana, lembrança de tempos mais simples e mais solidários. Agora o lixo é tanto e em tantos sentidos, que seriam necessários muitos actos, ainda mais heróicos, para resolver a questão...
125_azul
O lixo é, sem sombra de dúvida, um dos maiores responsáveis pelas inundações...
Beijinho
Enviar um comentário
<< Home