Lique-Lique
Liquelique land
[313] - O Lique-Lique era da Zambézia. Lançou-se à aventura de Maputo e apresentou-se em minha casa, devidamente recomendado pelo Judas, meu fiel marinheiro do Clube Naval até 96, data em que decidi trocar a papaia (África, terra bruta, que até à papaia lhe chamam de fruta) de Marracuene pelas nêsperas que eu julgava serem da região saloia mas que, depois, se me apresentaram com coloridos rótulos castelhanos.
Pois o Lique-Lique, mesmo não recomendado, teria de imediato sido admitido para meu serviço doméstico. O seu sorriso franco e fácil (esta do sorriso é uma expressão amena, o Lique-Lique dava gargalhadas que punham os cães a ladrar…) os seus olhos sinceros e a sua disponibilidade para tudo o que tivesse a ver com o meu bem estar eram predicados mais que suficientes para eu «inventar» fosse o que fosse para ele fazer.
Assente que trataria do jardim e lavagem dos carros (vou lavar carro da patrão e da senhóra cada vez cada dia), o Lique-Lique passou a fazer parte do meu quotidiano. Mais não fosse para me tratar do fígado, de cada vez que dizia qualquer coisa… e se ele tinha coisas para dizer! Ocorre-me uma vez que fui a casa dele dar uma injecção à mulher (à de Maputo, a outra estava na Zambézia a tomar conta dos filhos) e vi um desgraçado cão, magro, esfomeado, olhos cavos e cabeça baixa. Perguntei:
- Lique Lique, de quem é esse cão?
- É meu patrão ( a rapidez da oração liquidava a vírgula, o que para um rooker em coisas de África poderia parecer que ele me estaria a chamar cão).
- Mas está tão magro… o cão não come?
- Come, patrão, eu que não le dou…
Lá discuti com ele as razões pelas quais ele não alimentava o cão e saí dali com a promessa de um aumento de ordenado, desde que ele me levasse o cão lá a casa uma vez por mês para me certificar de que o cão estava a ser devidamente alimentado.
Haveria mil histórias do Lique-Lique, muitas delas só perceptíveis a quem conheça África e que teriam de ser contadas por alguém com o génio e sensibilidade de um Mia Couto para terem graça. Mas este Lique-Lique faz parte do meu álbum de recordações. Durante cerca de 10 anos lavou o carro do patrão e da senhóra cada dia cada vez, trazia a relva aparada ao pormenor e o jardim num brinco (descontando uma vez em que, durante a noite, abriu cerca de 10 buracos no relvado e, munido de uma mangueira, conseguiu dar caça a uma toupeira desgraçada que lhe arruinava o trabalho…), deu de comer aos cães (aos meus e espero que ao dele…) e não me lembro de o ver triste. Mesmo quando a mulher lhe fugiu com um tropa e achou que as mulheres cá em Maputo coração delas não pensa só pensa dinheiro e capulana não era como mulher da Zambézia que estava lá tratar dos filhos…
Pois o Lique Lique escreveu-me. E não resisto a transcrever. Quote:
"Meu lembrado e saudado grande patrão.
A minina deu-me este endereço e assim eu queria lembrar patrão que estou trabalhar cá em Maputo mas agora estou fazer serviço na fábrica da coca cola de servente. Meu grande patrão eu estou sempre pidir patrão tem saúde e sorte porque eu lembra patrão sempre ajuda Lique-Lique também já tenho saudades das mininas e da casa. Quando vens a Maputo? Favor não esquece visitar Lique-Lique podes perguntar na coca cola (segue número de telefone) eu queria muito ver patrão e tem muitas saudades"
unquote e vem mais meia dúzia de pormenores.
Às vezes vale mais uma carta destas que muitas coisas com que tropeçamos todos os dias e que pensamos que são boas!
18 Comments:
Quantas histórias destas o meu avô contava...
Histórias destas afastam todo e qualquer matiz de cinzento com que Bruxelas se veste habitualmente.
Obrigada espumante.
A sorte que tu tens, espumante! _ como eu adorava receber uma carta do João Cooker ou da Elisa! abraço comovido, IO.
Ainda de lembro de quando me pedias a mim ou a minha irma para irmos "levar la fora o jantar ao Lique Lique" e tinhamos ambos um terror de morte da sua figura soturna recortada na noite. Iamos e vinhamos a correr. E ele ria-se. Era um fixe, o Lique Lique.
Pitucha
Tenho a certeza que sou bastante mais novo que o teu avô. Como vês, as pessoas passam e as histórias ficam, sempre diferentes, sempre as mesmas... :)
_IO
Se me deres as coordenadas, devo lá ir em Junho... :)
Musca
Lembro-me bem da cena de irem lá fora... não sabia era do terror :))) segredos e cumplicidades de infância:)
Vem depressa...
Zero referências, infelizmente... mas, pelo menos, a Elisa fi-la atravessar comigo as páginas do livro sobre esse tempo! _ um beijo, IO. E hei-de falar deles, no 'chuinga'!
Há lealdade dentro deste coração!
Vais a Moçambique em Junho? Beijinho para ti!
já depois de ter saído daqui, veio-me à ideia outra ideia: há aqui uma homenagem ao povo da Zambézia. O Lique- Lique leal é da Zambézia e a mulher do Lique-Lique que não o traiu também era a da Zambézia.
Tenho de começar a dizer aos meus amigos que sou da Zambézia!
Um beijinho zambeziano
vens cá em Junho??????????
do meu tempo é o Simião, que ainda hoje pergunta por nós, os catraios da altura e vai mantendo algum contacto. Sei hoje que nos aceitou como se de filhos dele fossemos. A tal lealdade que falei em post lá no meu canteiro. Beijos
Passa pelo Chora. tens lá uma missão!
Beijinho Passadita desaparecida!
Madalena
Já passei, já respondi, já tudo. Só tu me levarias na curva :))
Mesmo quem nunca fez parte desse cenário, em terras longiquas, mas que te conheça um pouco que seja, é-lhe fácil perceber o porquê de, passado tanto tempo, haver alguém que te serviu e que na sua simplicidade se lembra de ti com amizade e saudades verdadeiras e sentidas.- Gota
mmicr
O Simeão comeu o Pantufa... mas se eu fizesse um post disso ninguém acreditaria :)
Gota
Um beijinho pelas tuas palavras
O Pantufa, um gato com ares de garfielda adorava as sardinhas que o Simeão (corrigido)trazia logo às tantas da matina. Se escreveres sobre este episódio, certa estou que também explicarias a "fome".
...como se calhar também te lembrarias do ataque feito a um truck cheio de tomate, por toda a gente, pleno semáforo, enquanto estavamos nós a devolver um video e tu muito pai me explicavas porque uma rapariga de 14 anos não se deve apaixonar por um rapaz de 40 e tais. Claro que após o episódio do tomate, o da paixão deixou de fazer sentido!
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