quinta-feira, agosto 19, 2004

Gastador

Já sou crescidinho, mas tenho uma família que me acha gastador, mau gestor de assuntos domésticos e absolutamente insensível a preços. É uma perfeita injustiça... sempre considerei o preço um dos factores que, com a qualidade e outros pormenores, me levam a adquirir ou não o produto. Acontece que por circunstancialismo extrínseco me tenho visto obrigado a comprar coisas a que não estava habituado, como sejam as groceries (desculpem a “inglesice”, mas não conheço sinónimo português tão abrangente). E é assim que sou, frequentemente, acusado, vilipendiado e quase assado em fogueira de inquisição por verdadeiras “barbaridades” que faço, quando menciono, ao acaso, o preço de algum item que tenha comprado em vulgares supermercados. Então tu não conheces o Lidl ? Nunca foste ao MiniPreço ? E porque vais ao PingoDoce? Ainda não leste os estudos de mercado que referem o PingoDoce como o mais caro dos supermercados? Pessoa cordata e cheio de espírito de família, oiço as críticas e lá vou pensando com os meus botões que se calhar são capazes de ter razão. E que, provavelmente, escolher entre uma manteiga Mimosa ou Ucal, um azeite Gallo ou Oliveira da Serra, (que diabo, não me lembro de mais marcas, mas concedam-me o mérito de ter citado já três delas o que há algum tempo atrás seria impensável.) mas, dizia eu, escolher marcas entre produtos tão semelhantes, era capaz de ser preciosismo, apesar de eu me ter vindo a habituar a algumas delas. Até que um dia, numa deambulação ociosa de um Sábado à tarde, deparo com um estabelecimento ostentando o apelativo nome de “MiniPreço”. É hoje, pensei eu! É hoje que eu começo a “educar-me” na difícil arte de comprar bom e barato. E meti-me à tarefa. Meti o carro por aquilo que me parecia ser o parque de estacionamento, apesar dos tapumes, montinhos de pedras de “calçada à portuguesa” à espera de serem aplicadas, bandeirinhas triangulares vermelhas e brancas (que eu julgo significarem obras, não era preciso o esforço, tal era a barafunda de pedras, lixo, betoneiras, carrinhas de empreiteiro estacionadas a esmo, tubos de plástico enrolado e outras delícias, que as bandeirinhas eram dispensáveis, apesar de “irem bem” com as cores do tal supermercado) até conseguir uma nesga para o carro. Entro no “MiniPreço”. A multidão movimenta-se para lá e para cá, para cima e para baixo, de lado, aos encontrões, suada, ruidosa e apressada e, mesmo assim, rindo-se, Quase toda a gente se ria, o que me faz pensar que quando alguém me disser que os portugueses são um povo sorumbático, eu mando-o ir ver portugueses ao “MiniPreço” Claro que tive alguma dificuldade em perceber por onde é que se entrava...mas consegui e entrei. Percorro os corredores das prateleiras... havia caixas de papel higiénico abertas, espalhadas pelo chão (admito que o papel higiénico não fosse em segunda mão...), toalhas, toalhinhas e toalhetes, detergentes, sabões, ovos e sabonetes. Leite, muito leite. Massas e latas de comida para animais, bolachas, artigos de plástico, farinhas e... tudo. Havia tudo. Preços, era mais difícil. Eu, que me tinha pressurosamente disposto a educar os meus desvarios de compras de supermercado, bem me esforçava para ver os preços e ver preços, via... mas precisava de longos momentos para “acasalar” as etiquetas com os artigos “expostos”. Esforçadamente, fui martelando a inteligência com a tal teoria familiar de que eu não ligava a preços e fui vagueando entre as (centenas) de caixas de leite, rolos de papel higiénico, até me aperceber de que não só precisava nada daquilo como me era extremamente difícil distinguir preços. De repente, o sol brilhou. Vejo um pacote de plástico com três salsichas ostentando a palavra “Baviera”. Desconfiado, peguei no pacote e li: “Made in Germany”, importado e embalado (este “embalado” fez-me franzir o nariz...) por não sei quem, Rua não sei das quantas, Amadora. Investi pelas dezenas de etiquetas de preços coladas com fita adesiva nas prateleira, até que vejo: Salsichas Baviera, 1,08 Euros. Rejubilei... três salsichas alemãs (ainda que “embaladas" na Amadora) por um Euro. Lembrei-me que costumo comprar umas salsichas deliciosas, alemãs, num minimercado perto de casa, em saquinhos de quatro unidades a 5 Euros. Ora aí estava... eu andava mesmo a ser levado. Peguei logo nas Bavieras, tipo trofeu de safari e continuei. Passados uns bons 10 minutos sem mais nada que me chamasse a atenção, acabei por comprar um cartão com 6 ovos (Tipo G, seja lá o que isso signifique, “frescos”, prazo de validade tudo em ordem...), mesmo não tendo conseguido descortinar o preço. Mas a avaliar pela amostra das salsichas, devia ser barato. Continuo a viagem entre a algazarra de “portugueses sorumbáticos” que me transmitiam a ideia de que tinham ido todos para ali contar anedotas, passei por melões... vi gente (homens, claro) apalpando e sopesando melões, carregando desalmadamente com os polegares nas extremidades dos ditos, tudo isto com aquele olhar sábio e científico que só os portugueses sabem fazer quando se dedicam à sofisticada operação de examinar melões... ainda dei uma vista de olhos... mas o melão agora é sempre branco, é todo branco, tenho saudade do melão verde “pele de sapo” e desisti. As risadas continuavam, uma ou outra estalada em putos simpáticos que iam mexendo em tudo e deparo com as instalações frigoríficas. Como gosto de chouriços, olhei para um milhão de chouriços expostos, pensando que teria ali farta escolha... o chouriço dizia “chouriço corrente” da Nobre. Vi tantos, mesmo todos correntes, que acabei por comprar um. Isto em obediência estrita às “tareias” que tinha levado da família... eu tinha que comprar coisas no MiniPreço. Ao fim de uma boa meia hora, eu tinha três salsichas Baviera, um chouriço e seis ovos... e palavra de honra que não sabia bem o que é que havia de comprar mais. “Bichei” (palavra moçambicana que significa fazer bichas, sem complexos de que estejamos a chamar maricas a alguém e que faz todo o sentido quando nos colocamos numa bicha) para pagar. Muitos pagamentos depois (as pessoas nem eram muitas, mas havia coisas esquisitas, pessoas que queriam mais que uma conta, que tinham cartão MiniPreço para umas compras mas que não davam para outras, descontos, promoções, senhas e toda uma parafernália que não consegui entender mas que os portugueses devem gostar porque continuavam a rir... no que eram acompanhadas pelas meninas das caixas, nos intervalos em que estas iam falando umas com as outras sobre se iam a PuntaCana, Ibiza ou Maiorca nas férias, ao mesmo tempo que iam passando os códigos de barra pelas máquinas) e, entre “plins” das máquinas, cartões de desconto, senhas e férias em PuntaCana lá chegou a minha vez. Paguei, perante um olhar de uma menina com cara de “este gajo deve ser parvo, vem aqui para levar seis ovos, um chouriço e três salsichas”, e fugi. Literalmente. Em casa tive dissabores... um dia depois de ter aberto o pacote das Bavieras, refilei com a miúda no género “filha, quantas vezes te disse para não deixares a lata da comida das gatas no frigorífico ?” – (pai... eu...? mas alguma vez deixei latas abertas da comida das gatas no frigorífico?), abri dois ovos para estrelar que “alastraram” pela frigideira e ficaram assim tipo bolacha Maria e deitei o chouriço fora que nem as gatas lhe tocaram. Concluí que uma coisa é ser poupado... outra é manter este nosso espiritozinho de português poupado que é incessantemente levado na curva (sem dolo, porque os portugueses riem...), numa mistura interessante de poupança com miserabilismo, que nos fica bem e permite que gente como a IKEA nos venda itens a “preço único europeu”, excepto para Portugal, claro, onde uma cama de bebé, da mesma marca, da mesma referência, custa EXACTAMENTE o mesmo em todos os países da União Europeia, e custa aqui mais 100 Euros. Se duvidarem é só consultar o site na net... e quando a minha mãezinha me disser que não sou poupado, vou ao sítio do costume, compro duas “Schlessias" fresquinhas e deliciosas, frito dois ovos redondinhos e como uma sanduíche de bom chouriço. Fica-me 10 ou 15 % mais caro, mas fico feliz e poupo em remédios para o stress.