Dignidade e respeito?
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Ontem ao fim da tarde tive uma experiência estranha. Num semáforo de Campolide estava um homem de casaco e gravata tocando violino, que aproveitava o sinal vermelho para se abeirar dos carros pedindo uma moeda. Habituado ao sistema português do “esgraçadinho” de calça arregaçada para mostrar as sequelas da poliomielite ou da mãe andrajosa a mostrar as crias sujas e com moscas para pedir uma moedinha “pelo amor de Deus”, reparei melhor no violinista tentando perceber melhor o cenário. A verdade é que a proximidade e um pouco mais de atenção revelaram um casaco puído, umas calças brilhantes do ferro excessivo, uns sapatos cambados e uma gravata que conhecera outras épocas de maior glamour.
Quase instintivamente, entreguei-lhe uma moeda. Achei que o facto de aquele pedinte se encontrar de fato e gravata, ainda que velhos, representava um sentimento de dignidade perdida algures num despedimento do trabalho ou noutras voltas em que a vida pode ser fértil. Não que o pedinte mo tivesse dito, mas porque o senti. Posso ter-me enganado, mas foi exactamente isso que senti. Aquele homem lutava para não perder a mão da dignidade que parecia ter-lhe fugido, da compostura que desejava a todo o custo manter, para além da demonstração subconsciente de respeito pelo próximo que, eventualmente, lhe daria uma moeda.
A verdade é que naquele curto período de espera pelo sinal de verde, pelo menos mais duas pessoas lhe deram uma moeda, para além de mim. O que pode ser um sinal inequívoco de que nem sempre o fado e a desgraça funcionam no bom sentido. Mas, infelizmente, o fado e a desgraça são o que de melhor continuamos a saber fazer.
10 Comments:
Que triste.
Infelizmente, temos cada vez mais pessoas dignas, em situações desesperantes.
E embora a máxima
"antes pedir que roubar"
É humilhante para a sociedade, em pleno século XXI, não haver apoios.
Minha alma chora
Custa-me dar a moedinha, mas já houve alturas em que dei o pão que tinha na mochila para o lanche a quem pedia a moedinha para comer... Até ao momento em que vi a "esgracadinha", que quase contrariada aceitou o meu pão, atirá-lo para o chão e continuar o peditório da moedinha pelos transeuntes mais próximos...
Será que tenho de voltar a ganhar confiança?...
Já várias vezes debati este tema, de mim para comigo, dentro do carro, à espera que o sinal mude para verde. Fico a debater-me, num conflito entre ideias e sentimentos. Já tentei elaborar um post sobre o assunto, mas não consegui ainda expressar-me ...
... e o teu post é uma ponta do iceberg!
Assunto complicado, hein!?
Beijinhos,
Sinapse
Laura Lara
Muito triste, sim
Cristina
Essa é uma cena mais ou menos recorrente. O que me chamou mais a atenção foi a dignidade do homem. Pedinte, mas digno. Talvez por isso lhe tenha dado a moeda.
Sinapse
Eu não pretendi fazer um post sobe a mendicidade pelo que o post nem sequer a ponta do ice berg é. Repito o que já disse á Cristina, o que me chamou a atenção foi o facto de o homem se apresentar escorreito e digno, sem aqueles cenários trágicos do costume. E ainda o pormenor de o fato, a gravata e os sapatos serem já bstante coçados, muito uso, muitos anos... o que não foi suficiente para que o homem deixasse de andar composto.
Beijinhos bem explicadinhos :))
Viram um daqueles contos de Natal que passou na RTP (o primeiro, se não me engano) em que a personagem principal era um pedinte representado pelo Nicolau Breyner? Era um pedinte desses, que procurou manter-se «escorreito e digno»...
Cristina
Por acaso não vi. Mas atenção, eu não me afirmei seguro da minha convicção. Limitei-me a expressá-la, fazendo um paralelo entre o "porte" deste pedinte (que me pareceu sincero) e o quadro habitual da desgraça da mulher a mostrar filhos famélicos e com feridas...
Foi só isso.
Sim, sim, eu percebi. E por isso me lembrei do Nicolau no conto de Natal...
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