Seis Menos Um Quarto
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É disto que eu gosto. O meu restaurante habitual é um comedouro escuro, de gosto duvidosos mas onde se come bem e com um toldo redondo no exterior onde, com esforço, conseguimos reconhecer o nome do mesmo e que não deve ser lavado desde o regicídio. À porta, há invariavelmente um montinho de pedras de calçada à portuguesa pelo menos há nove anos, de buracos feitos e nunca tapados, e que me faz lembrar o relógio da torre do quartel de bombeiros da Encarnação que marca seis menos um quarto desde as seis menos um quarto de um qualquer dia dos anos sessenta, ainda eu andava a apanhar caracois pelos campos daquilo que hoje dizem ser Olivais-Sul.
Os montinhos de pedras da calçada não devem ser tão antigas como o tal relógio, mas para lá caminham. Uma das razões que me levariam a votar Maria José Nogueira Pinto, foi ela ter dito que acabaria de imediato com a tal calçada, um ninho de porcaria, areia, poeira, incómodos e saltos partidos dos sapatos de senhora. Mas, ganhou o Carmona e ele lá terá outras prioridades. Voltando ao restaurante… lá dentro, aquilo é igual a uma centena de restaurantes da zona. Empregado brasileiro a precisar de legendas de cada vez que ele me diz qual é o prato do dia, menu com caligrafia ( e ortografia) de 4ª classe da tropa, um ar condicionado que em nove anos deve ter trabalhado aí umas cinco vezes (há sempre uma dama friorenta e um cavalheiro com rinite e ácaros, muitos ácaros), as inevitáveis televisões em "mute" ( a gente vai vendo as imagens e deduz o resto, aliás nada difícil) e os mastigantes, como diria o Zé Quitério no Expresso.
Os mastigantes são sempre diferentes e quase sempre os mesmos. O homem da UGT (que come sempre de guardanapo preso ao colarinho), um arguido do processo Casa Pia, um grupinho de "iúpis" lusitanos com aqueles nós de gravata da grossura de um canhão sem recuo, gel versão 2005 do antigo "fixador de barbeiro" e dois ou três patos bravos, daqueles que se entretêm a encher as ruas da Lapa com uns contentores de entulho e onde, com propriedade, alguém os devia meter a eles próprios. Desde que lhes tirassem primeiro os anéis e os fios de ouro. Há também algumas mulheres. Umas bonitas, outras menos bonitas (não há mulheres feias) e todas elas com aquele ar de quem paira, sobranceiramente, num mundo de homens. Aliás este "ar" tem vindo reconhecidamente a generalizar-se. Por mim, embirro com este "ar", aliás embirro mesmo com o termo pairar, lembra-me o açor, a águia real, o falcão e o milhafre, rapina, enfim, e eu acho injusto (pelo menos, redutor...) colocarmos as mulheres nesta classe da taxonomia ornitológica (não acredito que disse isto…).
Bom… mas hoje lá está uma falconídea (honni soit…). Olhar penetrante e nariz adunco, ainda que bem desenhado, garras afiadas e plumagem de gosto. Entrou esvoaçando, pairou, mirou sem olhar para ninguém e acomodou-se na cadeira com a graça e a leveza de uma garça, que não é de rapina… mas este gesto teve mais de garça do que coruja rateira. Olhou displicentemente para o menu (eu diria, até, que com enfado), fez meia dúzia de perguntas ao pobre do brasileiro enquanto segurava o menu com a pontinha das garras e acabou por encomendar "lulas à sevilhana", com ar de quem tinha andado em aulas de piano com a Virgem de Marcarena. As lulas vieram e a falconídea comeu sem levantar os olhos do prato, ainda que, naturalmente, nada lhe escapasse em redor. De repente, sem que nada o fizesse esperar, virou-se para mim e perguntou-me as horas: - Seis menos um quarto, disse eu!
Fulminou-me com o olhar, género "este tipo deve pensar que tem graça" e eu fiquei sem jeito a olhar para ela. E eis que se me faz luz no espírito e lá lhe expliquei que no momento exacto em que ela me perguntou as horas eu estava a conversar com dois colegas sobre o facto de o tal relógio dos bombeiros da Encarnação marcar seis menos um quarto há mais de quarenta anos. Não sei se ela acreditou… mas também não interessa muito. Interessa tanto como esta historieta idiota que resolvi trazer para o blog, porque não me apetece escrever sobre coisas sérias. Se é que alguma vez escrevi alguma coisa séria no "Espumadamente"…
11 Comments:
Já tinha saudades destas tuas histórias reais e pouco sérias ;) Venham mais cinco! ou seis!
Eu cá gosto de rapinas. São exigentes, acasalam para a vida e esvoaçam lá nas alturas sem se preocuparem com as horas que marca um qualquer relógio. E também gosto de ver as mulheres com esse ar de topo de cadeia alimentar, tão longe das ratas facilmente comidas por um qualquer "com dor aqui, com dor ali...". E só não digo muito mais porque meteste esse "não há mulheres feias" no sítio certo do post ;)
t-shelf
És uma querida :)) Beijinho
Hipatia
os "com dor aqui" não são para aqui chamados, que eu já ando aí por essa fase... pelo menos a começar :)))) e aquela de não haver mulheres feias, é uma liberdade poética :)
beijinho para ti e obrigado pela Julianne. Já embrulhei para o Natal
:)
Mas o que seria de nós sem o relógio dos bombeiros da Encarnação. Já imaginaste somo seria indicar caminhos sem essa referência? Ninguém conseguiria ir visitar-me aos Olivais...
Beijos
Pitucha
Agora que falaste nisso...
Bom, mas há sempre gente com um particular sentido de orientação :)))
Beijos
Como se diz agora??
"Bóptimo"? è isso: acima de óptimo!!
:)
Gota
Tem graça, ia jurar que o relógio já funciona ...
Hoje quando regressar a casa vou ver se não me esqueço de olhar para ele.
Gota
Bombeiro.
Será?
:)
Xana
Funciona?
:)
Pois parece que não ... ou talvez esteja a funcionar muiiito devagariiiinho pois já são seis e 2 minutos (ou será meio-dia e meia?)
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