Nada como tratar do palato, em tempos de cretinismo militante
Sentei-me e fui atendido com a familiar gentileza de quem almoça
naquele restaurante quase diariamente. O prato do dia era dobradinha com feijão
branco, um prato que a cozinheira executa com particular esmero e apresenta com
apreciável aprumo. A dobradinha é mesmo dobrada cortada em pedacinhos, bem emulsionada
com o feijão branco em ponto óptimo de cozedura, refogo e tempero, servida numa
travessinha rectangular, com dimensões adequadas a que não se encha a toalha de
nódoas de molho, tudo muito apetitoso, muito salpicado de salsa, muito regalo à
vista, à pituitária e à sensação incomparável de se consolar o palato.
Mas a dobradinha tinha acabado… fui almoçar tarde e o Sr.
Gato (o homem chama-se Gato, vão por mim) torcia-se de embaraço por não me ter
guardado um pouco do prato do dia. Desculpas digeridas, pedi uns chocos
grelhados. Em menos de vinte minutos, foi-me disposta uma travessinha com dois
chocos sem tinta, tamanho de um punho de homem, impecavelmente grelhados e
almofadados por uma salada fresca de tomate cebola e alface. Ao canto da travessa
esperavam a deglutição três meias batatas cozidas, no ponto, nem cruas, nem desfeitas.
Trazido o galheteiro, temperei os chocos com um azeite que dizia qualquer coisa,
virgem, com um gosto que me permitiria adivinhar-lhe o passaporte fosse onde
fosse, um vinagre de vinho natural, longe das modernices balsâmicas dos
vinagres que pululam por aí, e degustei dois exemplares fabulosos de
cefalópodes do nosso Atlântico. Sabiam a mar da Ericeira, a textura era inimitável
e só de olhar para eles, loiros e cheirosos a maresia, o apetite aumentava. As
batatas sabiam a terra da Lourinhã e disfarçavam a qualidade banal do tomate,
da alface e da cebola, obviamente colhidos numa qualquer estufa do oeste onde
os legumes crescem cada vez mais depressa e sabem cada vez a menos seja o que
for.
Uma opípara refeição. E, todavia, todos os ingredientes eram
triviais e sem grandes artes gastronómicas. No fundo, um grelhado e um cozido,
pedindo meças a um qualquer prato sofisticado de haute-cuisine.
No fim, um arroz doce impecável de textura, gosto e aparência,
rematou o repasto. E pensei que realmente deve haver uma qualquer razão para que
nos gabemos de ter o melhor peixe do mundo e, ainda, em alguns lugares, os
melhores legumes do mundo. Já comi choco em muitas partes do globo, até
calamari steak já comi num restaurante de luxo em Rosebank (um subúrbio posh de
Joanesburgo) e batatas, não dá sequer para enumerar. Mas degustar dois chocos
como degustei hoje, acompanhados por tão virtuosas solanáceas é uma bênção dos
céus que deve ter caído neste pedaço do planeta, que nós nos esforçamos tanto por
estragar.
*
*
Etiquetas: coisas boas
3 Comments:
coisas muito boas ....
eu gosto de dobrada com grão e choquinhos com tinta
Até que enfim, um cretino que se reconhece.
Enviar um comentário
<< Home