terça-feira, maio 22, 2012

Chupa os dedos


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Há dias aterrei em Maputo com o semblante de quem tinha acabado de descobrir a cana para o foguete. Escaldado (e recalcado, diga-se) quando, dias antes no consulado de Angola, fui submetido a uma medição dos meus dados biométricos e me foi dito, preto no branco, literalmente, que as minhas impressões digitais não estavam boas, regozijava-me com o facto de no aeroporto de Mavalane não ser necessário aquela cena do visto em Lisboa, tudo se resumindo à obtenção de um visto no próprio aeroporto. Mesmo quando reparei em cerca de cinquenta pessoas que tinham pensado como eu e bichavam pacientemente para obterem o tal visto, não desanimei. Alguns minutos ali perdidos certamente compensariam a maçada dos preliminares lisboetas. O meu sorriso foi amarelecendo à medida que reparei que o balcão dos «vistos de fronteira» tinha três pessoas, dois homens e uma mulher. Explico-me. O primeiro homem recebe €60, o segundo pede-nos o passaporte e a mulher tira-nos uma foto e recolhe as nossa impressões digitais numa maquineta com uma luz verde que é suposta saber o que faz mas que comigo, e à semelhança do que me acontecera em Lisboa no consulado de Angola, não terá sido o caso. Após tirar a foto num fundo azul e com cara de onze horas de voo, a menina diz-me:

- Põe aqui o dedo.

E eu, pus.

- É pá, os teus dedos não dão impressão.


- Põe o teu dedo outra vez.

E eu, bovinamente, pus. Apertei o indicador e o médio sobre o vidro com a luzinha verde. Até a menina dizer de novo:

- Os teus dedos não estão bons. Não dão impressão digital.

Lembrei-me do episódio de Lisboa, no consulado de Angola e introverti um legítimo receio de que alguma coisa de errado se estaria passando com os meus dedos. Olhei para os ditos, mirei, remirei e lá estavam elas, as impressões, bem definidas e, tenho a certeza, únicas, marca minha.

- Olha, eu tenho impressões digitais, talvez é a máquina que não esteja boa…

- Um momento, diz a menina. E chama o chefe. Aquele que à cabeça recebia os €60. Entretanto atrás de mim «bichavam» já seguramente umas vinte pessoas raivosas porque aparecia ali um «fabiano» sem impressões digitais, enquanto eu iniciava um processo de dúvida sobre a minha anatomia real.

O homem, gordo e simpático, veio para o pé de mim e disse:

- Coloca lá os dedos. Mas coloca bem.

Eu, que achava que já tinha colocado os dedos bem, procurarei colocá-los… bem.

- Irmão, os teus dedos não dão impressão…

- Pois, parece que não, balbuciei eu, mas deve ser a máquina, a impressão está aqui – e apontei-lhe o indicador.

- Chupa os dedos, disse o homem gordo e simpático.

Aqui, estremeci. Seria que ele estava a dizer-me mesmo para chupar os meus dedos, depois de os ter colocado mil vezes sobre aquele pedacinho de vidro onde mil dedos teriam já pousado? E isso mesmo devo ter transmitido no meu olhar, porque ele repetiu:

- Chupa os dedos, estão muito secos.

Há alturas na vida em que estamos por tudo. No meu caso, cansado, moído e já com sérias dúvidas sobre a minha regularidade anatómica achei que não havia muito por onde escolher. Esfreguei então, vigorosamente, os dedos na camisa (um mínimo de asseio…) e chupei os dedos. Já me devia estar a dar a dar para o disparate porque não só os chupei como os lambi. Tanto que me pareceu vislumbrar uma expressão de deleite na moça que me atendera de início, mas isso já devia ser eu a fazer filmes… E quando acabei de lamber e chupar os dedos e me preparava para os passar na camisa, diz-me o homem gordo e simpático:

- Nãããããão, assim mesmo, não tira o cuspo.

Daqui para a frente resta-me uma imagem meio desfocada da história. Coloquei os dedos cuspidos no vidro, pensei que tinha acabado de chupar os dedos depois de os ter colocado num vidro onde mil pessoas tinham colocado dedos cuspidos e lembro-me de ter ouvido o homem dizer que ainda não dava, lembro-me de ter dito ao homem de que ele que não se lembrasse de me pedir para meter os dedos fosse onde fosse porque o não faria… nem morto e lembro-me do homem se rir, dizer que lhe devia uma «Laurentina» e que ele ia colocar o dedo dele. E assim entrei no país com uma foto minha e um dedo de um camarada, gordo e simpático que nessa noite deve ter contado á família que tinha encontrado uma pessoa no aeroporto sem impressões. Um português.

Este episódio, verídico em cada vírgula, demonstra duas coisas. Que não devemos ser esquisitos com os dedos, por vezes eles terão de passar pelos sítios mais inverosímeis nas condições menos esperadas. E que não vale a pena a gente chatear-se muito na vida. Afinal a minha cena dos dedos fez rir uma data de gente e eu, ao que me parece, não contraí nenhuma doença… Afinal os dedos eram meus. O que eventualmente estivesse neles é que não seria, mas a vida sem o sal destes episódios fica insonsa – sem graça nenhuma.
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11 Comments:

At 9:02 da tarde, Blogger MargaridaCF disse...

Boas gargalhadas!Se fosse outra pessoa a contar, dificilmente acreditava. Consigo, já percebi, tudo é possivel.

 
At 9:37 da tarde, Anonymous IL disse...

Nunca mais me dás um aperto de mão. Juuro :D

 
At 9:59 da tarde, Anonymous Anónimo disse...

POissss é ..é tudo muito engraçado, e eu fui uma das pessoas que se ri pra valer, com esta história deliciosa, mas sabes que conheço gente que depois de passar por situações assim, vai parar ao hospital, até com dores no peito?!?!? :)))*

 
At 10:21 da tarde, Blogger estouparaaquivirada disse...

Essa é boa!!!! E os CSI convencidos que são donos de todas as verdades!
Optima história.

 
At 8:34 da manhã, Anonymous Alexandra disse...

Ahahahahahah,não se preocupe Nelson, sempre ouvi dizer que micróbio grande mata micróbio pequeno...

 
At 9:40 da manhã, Blogger Nelson Reprezas disse...

MargaridaCF

Às vezes convenço-me disso, sim... se montes de pessoas ali puseram os dedos e a maquineta deu «impressão digital», tinha de ser comigo que a traquitana não funcionava. Porque eu tenho imporessões, Margarida, juro que tenho :)))

 
At 9:41 da manhã, Blogger Nelson Reprezas disse...

IL
Hummmm estás a criar-me um problema. Assim sendo, aperto-te o quê????? :)))

 
At 9:41 da manhã, Blogger Nelson Reprezas disse...

anónimo

Dor de peito... é saudade :))) *

 
At 9:42 da manhã, Blogger Nelson Reprezas disse...

papoila

O CSI ali não se safaria, com certeza :)))

 
At 9:43 da manhã, Blogger Nelson Reprezas disse...

Alexandra
Micóbios grandes ou pequenos... a questão é que eram muitos :))) o melhor mesmo foi não pensar muito no assunto!

 
At 7:06 da manhã, Blogger Nelson Reprezas disse...

Da Serra

Na testa de quem? :)

 

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